PIRINAS
Um apito rouco pediu permissão para entrar na barra.
Seu Saul levantou as bandeirolas no mastro do pontal. Era ele o entendido.
Pirinas. Couraça preta na água barrenta. Atrás, a Convivência.
"Onde é que tem pimenta, da boa?" perguntou, gorro vermelho, barrigudo, blusa bege com gola de goleiro, calças folgadas, o cozinheiro de bordo.
Com ele, uma comitiva pisando a areia grossa e solta de Atafona: um verdadeiro bando de heróis saídos de uma escuna de sonhos.
Os olhos das crianças — debaixo da nogueira de hastes longas, saboreando-lhe a sombra farta, sentadas no tosco banco onde Chico Dantas costumava tomar pinga e esbravejar — pareciam devorá-los: encantamento!
Saídos das páginas de Júlio Verne, se abasteceram. Tomaram conhecimento de tudo. Até a estação esverdeada da maria-fumaça foram ver.
“Eta, pimentinha quente! Malagueta...", soltou o barrigudo de gorro vermelho.
Parecia um calidoscópio que rodasse nas mãos de uma criança a visão do Paraíba: triângulos brancos se entrelaçavam, corriam um ao lado do outro e, ao mesmo tempo, uns p'ra cá e outros p'ra lá.
"Tem rapadura?", perguntou o cozinheiro na vendinha do pai de Vavá.
"Cabô... Vê si tem no Eduardo Gômi... Ali na isquina, naquela subidinha, às isquerda... Aliiiii...", sinalizou com o beiço o pescador vendeiro.
As pranchas, as velas brancas enfunadas, coalhavam as proximidades da foz. Vinham de cinqüenta quilômetros rio acima, desde as rampas empedradas defronte aos armazéns da rua dos Andradas, onde gigantescas esculturas negras reluzentes ao sol contrastavam com a alvura dos sacos de açúcar que levavam à cabeça até às pranchas.
O dia-a-dia em contraste com o devaneio.
A couraça foi aos poucos mergulhando, até sobrar só uma faixa fina que se alargava na frente, na proa.
Guardou-se o calidoscópio.
Após, um apito rouco pedindo licença para sair da barra.
Seu Saul levantou as bandeirolas no mastro do pontal. Era ele o entendido.
A proa apontando o leste, o Pontal a bombordo, lá se foi o gorducho de gorro vermelho e blusa de goleiro, deliciando-se com a pimenta (mas sem a rapadura, que teve preguiça de ir até o Eduardo Gômi).
A carga era doce como doce era a água barrenta da embocadura.
Em pé, na praia, os olhos das crianças andavam lentamente até às bandas do horizonte: a couraça se fez um traço e o traço um ponto, que depois se fundiu à comprida linha tenuemente abaulada do horizonte, para trás da qual pulou por fim.
A escuna encantada voltara às páginas de Júlio Verne.
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Foi Seu Saul quem disse: "Foi na costa de Macaé... Sabe, aqueles apitos mais fortes, aquela fumarada mais grossa quando ia saindo da barra? Era um banco de areia..."
A couraça de aço está agora encravada no lodo do fundo, debaixo das águas verdes e salgadas, mas por um momento feitas doces, quando molharam os sacos alvos de algodão.
"Mas o gorducho do gorro vemelho conseguiu salvar a pimenta..." Pelo menos foi o que também disse Seu Saul.
A.C.W.C.de Azeredo
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