sábado, 26 de novembro de 2011

Atafona (crônica)

A T A F O N A

                        A lembrança mais remota de Atafona é um quase-sonho, em que não sei se os doces fantasmas que perambulam, indefinida e fantasmagoricamente, nos escaninhos de minha memória saíram do papel esmaecido da foto da "Vila Gabi", ou se são mesmo recordações do fato retratado à sombra do pé de "anoza", onde um menino de caracóis na cabeça se sentou no peito cabeludo de um herói deitado de costas na areia.  As janelas, hoje amarelas, não sei que cor tinham então.  Só me lembro da cor do riso do homem deitado, a um tempo triste e retumbante.  A sombra, como todas as sombras, tinha tons de calmaria; nela repousavam também Geórgia e Celuta, esta de olhos fechados, olhando para cima, num gesto de riso, a mão esquerda levada à boca;  no olhar de Geórgia, uma expressão intraduzível, a cuja lembrança me aflora um sentimento de compaixão mesclada de ternura.  Há também o bordão do homem com blusa vinho de gola de goleiro: parece-me que ele brincava de esconder-se atrás do poste...  parece...  não sei...  é difícil dizer se me recordo...  ou se era o outro retrato...  afinal, raramente a memória me leva para antes dos seis anos.  Pouco importa, uma vez que aconteceu.  E nas areias grossas de Atafona.
                        Entrelaçado ao nome de Atafona, paira também o jeito nervoso de Seu Sílvio, que gostava de corridas de cavalos e tinha um Austin preto.  Gaguice possuía um ar bonacheirão, e a imagem de tia Quita era franzina.  Tinham uma casa no Pontal: a "Vila Marta", com portas e janelas da cor da goiabada;  o nome encimava as duas janelas da frente que, como as demais, eram de duas bandeiras e sem venezianas.  Vizinhava, pela direita, com a vendinha de Seu Pedro   - que, por sua vez, dava, pelo outro lado, para um arremedo de pracinha, onde o fervor da fé que se apossou de Seu Saul, no mar encapelado que prometia levar-lhe o barco de pesca ao fundo em memorável tempestade, erigiu uma capelinha.  Pela esquerda, a "Vila Marta" fazia divisa com uma casinha  - antes branca e suja -  cercada de areia e que mais tarde  - ainda branca, mas agora limpa -  batizamos de "Vila Rozane" (em Atafona, as casas eram como gente: tinham nome também).  Atrás, as encostas da colina de areia, que tantas vezes tentamos remover e que teimava em lá ficar cobrindo a cerca divisória da viela para onde dava a casa do Chico Dantas, pescador semi-aposentado e sempre mal-humorado.  Nessa casinha de cinco cômodos, a "Vila Marta", já não mais os fantasmas da "Vila Gabi".
                        Euforicamente saboreada na mente, a cada ano, a antecipação das imagens das férias.  Pouca coisa se alterava no ritual.  O baú de ferro ia na frente, no carrinho de mão do freteiro.  Parte da turma o acompanhava a pé.  Antecipadamente, iam também o saco de açúcar cristal e outras coisas mais pesadas e desajeitadas de levar.  Eram despachados na Estação do Saco.  Pequenos tíquetes de papelão azulado davam passagem, pela borboleta, para a calçada, da altura dos patamares dos vagões de madeira da Leopoldina.  Carregadores fardados andavam apressados, de um para o outro lado, e a multidão se dava esbarrões no calçadão.  Parte daquela pressa devia ser emoção da viagem (pelo menor o era para o grupo do baú).  A hora do "control" da Leopoldina era considerada a oficial pela cidade, que para lá telefonava para tirar as dúvidas pertinentes.  A enorme balança marcava o preço do despacho, e o baú e seus anexos saíam das vistas da gurizada, que só os tornaria a ver no fim da linha, na estação de Atafona.  Os ponteiros tomavam posição no mostrador de louça.  Apitos do chefe da estação e do trem.  Toques de sinos.  Uma onda de vapor escondendo a locomotiva, que bufava para pôr em movimento a composição.  Nos bancos de madeira da segunda classe, os ensaios de rapazes guardavam lugar para os outros, que pegariam o trem na estação da Avenida Pelinca.
                        Já no Passeio Municipal, mais perto da Pelinca, olhares ansiosos pela janela do último carro.  A máquina, seguida dos vagões, mergulhava no arco que decorava a parede de tijolos expostos da estação e que tragava as baforadas de fumo jogadas pela chaminé bojuda da "maria-fumaça".  Os carros de passageiros estacionavam defronte às altas calçadas, uma de cada lado e cujas extremidades desciam em rampa até o chão.  A grande dificuldade era a camuflagem de Top, desacostumado da focinheira, que portava a contragosto sob panos para dar a idéia de um embrulho ou coisa que tal.  Para esconder os ganidos que gemia o pobrezinho  - a quem a Leopoldina fatalmente negaria o direito de viajar condignamente num carro de passageiros, caso o descobrisse -,  as crianças se punham a emitir sons similares, disfarçadamente e com beatas expressões no rosto.  Novos apitos e badalares de sinos, novas baforadas de fumaça preta, e parecia que éramos um metrônomo gigante, saindo do "largo" e que só não chegava ao "presto" porque, não muito longe, logo depois do Cine São José, a velocidade tinha de ser reduzida para, na bifurcação da guarita verde, tomar a esquerda, numa curva aberta.
                        Era só perto do Matadouro que começávamos a acompanhar o Paraíba, que não mais nos deixaria o resto da viagem e que em Atafona se tornaria nosso companheiro de brincadeiras no dia-a-dia.  Suas ribanceiras eram tão íngremes em Martins Lage, e chegavam tão perto dos trilhos, que, das janelas do trem, a um simples olhar vertical para baixo, se viam suas águas barrentas.  Aquilo nos dava medo!
                        Na Usina Barcellos, bem no meio da viagem, chamavam-nos a atenção as três (ou eram quatro?) ricas casas dos usineiros, diziam que em estilo americano, algumas com dois andares.  Contrastavam com as dos empregados, miúdas e baixas, brancas e enfileiradas, de telha canal e geminadas.  Era a época da safra da cana, e as chaminés, dia e noite, jogavam fumaça e espalhavam fuligem por tudo.  Tanto ali como em Martins Lage, o cheiro forte da fermentação, no processo do fabrico de açúcar e álcool, de longe nos alcançava, tornando-se sobremodo envolvente defronte àqueles pontos.
                        A fila de palmeiras que surgia lá longe e ia aos poucos crescendo anunciava a proximidade de São João da Barra, em cuja estação, também de tijolinhos, nunca faltavam os vendedores de bolinhos de arroz e "cocadas de abóbora".  Só mais três quilômetros, e estaríamos em Atafona!
                        A areia-do-viana, fina e branca como açúcar refinado, enchia os vãos entre os dormentes e se estendia, à esquerda, até a estrada de rodagem de chão batido, e, à direita, até a macega, onde as pitangueiras coloriam com minúsculos pontos vermelhos a verdura fustigada pelo sol e brotada num solo pobre.  O cheiro da maresia, embalsamando o vento nordeste que varria o vagão, era a especiaria mais fina!  A pequena reta final começava na curva branca da casa pequenina onde, um dia, Vozinha, depois de lavar a louça, jogou o alguidar e ficou segurando a água, quebrando-se aquele ao bater no chão (galhofa tantas vezes repetida por Papai em meio a gargalhadas!).  Ao escurecer, o trem chegava a Atafona.  O desembarque era movimentado.  Pescadores levavam a bagagem pesada para a canoa  - estacionada no porto a poucos passos da estação -que a levaria até a porta de nossa casa, no Pontal.
                        Parecia longa a caminhada a pé, mesmo cortando caminho pela rota arenosa da esquerda, que passava rente à Igreja da Penha, tão alva e em cujo adro amiúde brincávamos.  Ainda no largo da estação de pó de pedra esverdeada, a velha e comprida casa com telhas encardidas para onde Dona Conceição anualmente ia, no verão.  Depois, à esquerda, a "Nossa Casa", onde os Rebel se instalaram certa vez.  Pouco adiante, também à esquerda, a oficina de Seu Brás, cujo filho o ajudava na ferraria e costumava cantarolar, ao ritmo da bigorna e acompanhado do bufar intermitente do fole:  "Chegou o General da Banda, chegou! / Chegou o General da Banda, e já vai!".  Um longo trecho vazio de casas  - terminando no morrinho de areia que sempre subíamos, só para em seguida descê-lo correndo, em disparada, infindas vezes -,   e chegávamos à rua de chão duro por onde viriam Vozinha, Geórgia, Dona Branca e as crianças que preferiram o  trecho longo porém mais firme.  Naquele ponto, dois marcos:  de um lado, a casa da professora que diariamente atravessava a foz do Paraíba para dar aula na Convivência;  do outro, a do Eduardo Gomes, que transformara a garagem  no barzinho em que gastávamos parte de nossos minguados réis em soda limonada;  entre tais marcos, uma depressão, onde se instalara a rua, cujo leito era, a partir dali, a areia firme que a maré alta molhava cada dia.
                        Era o começo do Pontal.  Seu ponto culminante  - uma elevaçãozinha de uns cinco a sete metros -  fora escolhido para a instalação do farol cinza e branco que piscava à noite para os navios que eventualmente passassem ao largo.  Só descansou um pouco nos tempos da guerra, quando o "blackout" não deixava sequer acender fósforos ou lanternas na praia e mandava as portas e janelas das casas permanecer trancafiadas.
                        Eram sempre os mesmos veranistas no Pontal.  Suas casas ladeavam as dos pescadores:  a do Professor Achiles chamava a atenção pela varanda que quase a rodeava toda;  a casa nova de Seu Sílvio, pelos dois andaraes;  a dos Tâmega era aconchegantemente escondida no fundo de um quintal arborizado;  os Duncan fizeram uma perto dos coqueiros do cais da Niña  - o barco de pesca da Pensão Ivan, cuja chegada era mais concorrida que festa de padroeiro  (um dia, trouxeram, amarrado ao seu lado, um cação gigante, maior que a lancha e cujo esqueleto por muito tempo ficou na praia do rio, contando aos incréus o grande feito).
                        Sumamente singela, uma casinha branca daquele trecho não chegava a chamar a atenção, com suas janelas azuis.  Deve ter sido outrora venda, a julgar pelas duas janelas da frente, com peitoris mais novos que os velhos umbrais e a verga, indicando ter sido ali outrora lugar de portas;  o calçadão acimentado da frente, ocupando toda a largura da casa, confirmava a teoria.  Seu vasto quintal era um montão de areia.  Tal era a "Vila Rozane".
                        Defronte a nossa casinha, o Paraíba lançara um braço, cheio de piripiris e lodo, que chamávamos de maré e onde tantas vezes pescamos, ora jogando puçás dos batelões, ora com a rede de arrastão.  Na vazante, a parte arenosa vinha à tona, criando pequenos canais sinuosos, onde navegavam nossos barquinhos de brinquedo, habilmente cavados por Ivan nos toletes de pinho canadense saídos de caixotes de máquinas Singer.
                        Nossos habituais companheiros de brincadeiras eram filhos de pescadores.  Um desses pais, que se dizia também barbeiro, com tanta habilidade manuseava o instrumental da segunda profissão que, uma vez, deixou cair a navalha aberta no pé esquerdo de Maurício, o que se tentou remediar passando mercúrio-cromo.  Vavá e Carlinhos, seus filhos, eram uma dupla de nativos que se incorporou sem dificuldade ao nosso grupo.  Um dia, Ivan fez um carrinho de mão de uma só roda, empreendimento ao qual se associaram Marlon e Milton, outros dois irmãos praianos, de cuja casa só se via o telhado de sapé (o resto tinha sido quase todo escondido pela areia soprada pelo ímpeto do vento nordeste que,  a partir dali, vai varrendo toda a vasta Planície Goitacá);  esse carro nos trouxe uns bons trocados, com o transporte de pequenas bagagens, que tomávamos a frete na chegada do trem, um dos acontecimentos mais chiques de Atafona;  mas tudo era gasto em limonadas ou em doces coloridos e roscofes.  Na Avenida Atlântica, uma noite fiquei no "ora veja", quando a moeda que me coube na partilha dos honorários caiu na areia e se perdeu na escuridão.  Eram escuras as noites de Atafona.
                        Atafona se me afigurava a morada das estrelas, que em Campos já dificilmente se viam.  O breu da noite realçava-lhes o esplendor do brilho e era o pano de fundo em que se desenhava a Via Láctea.  Olhando-as, pasmo e quedo, conversava com elas.  Imperavam na imensidão só delas.  Não se viam, então, a areia e o mar, que no entanto sabíamos ali estarem sob nossos pés ou neles batendo.  Altruístas, as estrelas minguavam de tempo em tempo seu fulgor, assumindo o lugar de súditas da Lua Cheia.  Íamos ver emergir a rainha da noite, que, veloz no início, logo assumia a delicadeza do andar nobre e calmo com que subia para as grimpas do céu, assentando-se afinal no trono de seu reinado.  Agora, podíamos enxergar nossos pés, a alvura pálida da areia e uma estrada luminosa boiando nas águas do mar.
                        Os anos fizeram Atafona crescer e aposentar os lampiões e a poesia.  Há quem gabe o progresso que maquiou sua face, outrora singela e pura.  Não eu.  Plantaram postes, esticaram fios e acenderam lâmpadas.  Mas apagaram as estrelas de Atafona.


                                           Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo.
                                           Brasília, 1980.

2 comentários:

  1. Olá ! Adorei o seu texto ! Estou fazendo um levantamento da história ferroviária de São João da Barra e para tanto criei uma página no facebook intitulada HISTÓRIA FERROVIÁRIA DE SÃO JOÃO DA BARRA. Estou colhendo materiais, memórias, relatos bem como estou pesquisando em jornais de época a verdadeira história e intenção da Ferrovia Campista. Gostaria de publicar essa sua memória na página que criei, pois descreveu maravilhosamente os bons tempos de nossa ferrovia de Campos à Atafona! Abraços. Andre Pinto.

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  2. Excelente crônica. Memória afetiva pulsante.

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