sábado, 26 de novembro de 2011

O Farol de Atafona (crônica)

O FAROL DE ATAFONA

            O farol já não existe.
            Lembro-me dele e, ao lembrar-me, uma emoção doída me perpassa da garganta ao coração.  Esse mesmo coração que, ao vê-lo a primeira vez, teve a reação de toda criança que, no sopé de alguma colina, fica conhecendo um farol de verdade plantado no seu topo.
            Era um cilindro magro, alto, cinza e branco, no cimo de uma elevaçãozinha inexpressiva, ponto de transição entre o prolongamento da Avenida Atlântica e a faixa rasa e quase plana que era o Pontal, aquela extensão de areia coalhada de salsa que espeta e que ia correndo entre o mar e o Paraíba, para acabar morrendo no encontro deles, enxergando já bem perto a Convivência.
            A partir do farol, quantas figuras entrelaçadas, acotovelando-se por não poderem ocupar o mesmo espaço da memória ao mesmo tempo.  É como se, de suas grimpas, eu olhasse em redor até onde alcançava a vista e cobrisse num relance todo o universo de Atafona, um universo acanhado, é verdade, mas suficientemente grande para abrigar um mar de emoções, que o efeito multiplicador do tempo transformou num oceano de saudades.  Naquele tempo, Atafona não ia além, para as bandas do sul, do sobradinho no outro extremo da Avenida Atlântica e, no poente, das cercanias da farmácia  — depois açougue —  de Seu Pomada.
            Foi o mar.  Eu não vi.  Mas disseram que foi o mar.
            E pensar no quanto ele se afastara das últimas casas, deixando atrás um areal que causticava nossos pés na longa travessia até chegarmos ao mar, ora verde e salgado, quando soprava o vento sul, ora abóbora e doce, ao bafejo do nordeste, que trazia a torrente despejada pelo Paraíba.  Nessa vastidão entre as casas e o mar, um teco-teco pousou um dia perto do farol: rodeamo-lo e, quando o piloto desceu, foi como se fora, na nossa imaginação, um herói da segunda guerra então recém-finda.
            Toda a infância, o mar ficou distante.  Esse vaivém é cíclico, dizem, e nos dias de nossos avós, quando Atafona era praticamente só aquele correr de casas no alto que vem após a depressão que mora defronte à Pensão Ivan, o farol ficava junto delas.  Mas, com o afastamento paulatino do mar e o crescimento da vila em sua direção, o velho veio a ser derribado e se erigiu um novo farol, no começo do Pontal.


            Víamo-nos todas as férias, e nossa intimidade foi, assim, crescendo na sucessão dos anos.  Nas noites escuras do tempo em que a eletricidade ainda não havia aportado em Atafona, mergulhávamos nossos pés, em disparada, na areia solta de seu morrinho, iluminados pelo estreito facho de luz de uma lanterna de pilhas, porém só nós, as crianças.  Mas, quando havia lua, lá ia a família toda, em marcha calma de passeio, estalando, os pequenos, nos dedos, cigarrinhas de metal compradas dos camelôs; como o caminho para o centro passasse ao lado dele, olhávamos cá de baixo a luz fantasmática do luar, que emprestava ares de mistério à singela majestade do farol.
            De outras praias da redondeza, aquele piscar cadenciado mostrava, em noites propícias, no meio da escuridão, onde estava Atafona.  Às vezes, dava até a impressão, pelo desenho da costa, que o farol estava dentro do mar.
            Mas o farol já não existe e sua luz silenciou na treva noturnal.  Já não podemos mais piscar para ele nem apontar Atafona às crianças, quando anoitece.
                                   
A.C.W.C.de Azeredo

Nota: crônica escrita quando ainda não havia sido erigido o novo farol.

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