sábado, 26 de novembro de 2011

Araucárias - paisagem do Sul - bico-de-pena

Fazenda do Cerro - 3 (pintura sobre tela)

Fazenda do Cerro - 2 (bico-de-pena e aquarela)

Eternidade (poesia)

Eternidade

Antes do tempo,
quando pretéritas e incontáveis eras
tombavam sobre pretéritas e incontáveis eras
(quando as eras nem mesmo ainda eram),
num como que incompreensível e imensurável tempo eterno antes do tempo:
Deus.
Só Deus.
Mais ninguém.
Mais nada.
Nem tempo.
Só Deus.
O tempo era então um sonho na mente de Deus.
Tão sonho quanto o tangível, quanto o visível.
Foi tudo antes,
muito antes do princípio,
quando nem sequer as amplidões
nem o princípio do pó do mundo
ainda haviam sido feitos.
Já lá estava, nesse antes,
a Sabedoria, arquiteto de Deus.
E ela viu os alicerces da Criação serem plantados,
os céus e as amplidões serem convocados à existência,
e os abismos e fontes e montes e outeiros virem a lume,
e o horizonte ser desenhado sobre o rosto do abismo,
e as nuvens carregadas de águas começarem a viajar sobre o firmamento,
e o tracejado do limite dos mares.
E ela contemplou o mundo habitável de Deus,
e folgou quando tudo ia sendo feito
e se deliciou quando viu os filhos dos homens.

Ó Deus,
que insondáveis, que inescrutáveis
são os teus caminhos...
Tudo isso é maravilhoso demais,
elevado demais,
para que eu o possa atingir...
Eu te louvo, Deus meu, Senhor meu,
pelo que és e por todas as obras de  tuas mãos.
E toda a tua Criação, em coro,
há de dar glória a teu majestoso nome,
na sucessão infindável dos séculos por vir,
quando então, semelhantemente ao que era dantes,
virá um imensurável tempo eterno após o tempo.
Tudo para tua glória.


                                                                                    A.C.W.C.de Azeredo

(Pv 8.22-31; Gn 1; Rm 11.33-36; Sl 139.6; Fp 2.10; Ap 22.5.)

Menina de tranças (poesia)

Redondilhas Brancas para uma Menina de Tranças

Menina de tranças,
dos olhos de amêndoas,
do rosto redondo,
que um dia eu vi,
sob uma mangueira,
num grande quintal,
na infância distante.

Menina de tranças
castanho‑escuras,
suas tranças me ataram
(sem que eu o notasse)
à alma que olhava
'través dos seus olhos
de amêndoas p'ra mim.

Menina de tranças,
que foi p'r'outras plagas
levando suas tranças,
deixando meus olhos
fitarem‑na indo,
sem saber se acaso
de novo a veriam...

Menina de tranças,
que em mim fez nascer
um sonho silente,
dormido no tempo,
enquanto os anos
andavam tão lentos,
e ela distante...

Menina de tranças,
após muitas quadras,
eu vi seu retrato:
seus olhos de amêndoas
olhavam p'ra mim,
fazendo acordar
meu sonho dormente;

menina de tranças,
suave sorriso
enchia de cores
seus olhos de amêndoas
e o rosto sem tranças,
que lá já nâo 'stavam,
na infância deixadas.

Menina de tranças,
metamorfoseada
em doce mulher,
saiu do retrato
e veio um dia
bem perto de mim.
Falou‑me.  E eu sorri.

Menina de tranças,
assim cativado,
um dia subimos
a mesma colina,
onde uma igrejinha
de nós escutou
as juras de amor.

......................................................

E a vida seguindo,
seguiste a meu lado,
bem junto de mim.
'Ind' hoje eu sorrio,
de amor inundado,
lembrando o dia
em que eras ainda...

menina de tranças...


                                                                                          A.C.W.C.de Azeredo

Carro de bois (poesia)


Carro de bois

Carro de bois!  Quantas saudades me despertas
dos dias de minha infância, tempos doces em que a vida
me sorria a cada instante, tempos que não vão voltar...
Quand'hoje, algures, n'algum rincão distante
ainda escuto o teu choro insistente,
contigo chora a minha alma, lembrando a velha mangueira
sob a qual tu descansavas da dura lida diária,
no tempo em que eras só tu trabalhando em todo o canto
e eras pau p'ra toda obra.
Passavas cheio de cana, cavando no chão da estrada
profundos sulcos na lama, balouçando a cada passo;
mas valente prosseguias, como tu, só tu, podias,
enfrentando os atoleiros;
e se era tempo seco, os torrões não te impediam:
eras o rei de então,
tudo em teu dorso levando, colheitas, gente, mobílias,
sem conhecer empecilhos.
P'ra ti não havia fronteiras: ias, a fronte altaneira,
p'ra frente sempre marchando, os perigos desprezando:
não havia teu igual!
Mas, um dia, novos ventos no grande plaino sopraram,
e motores roncadores, esfumaçando o ar,
te mandaram para sempre para a sombra da mangueira,
onde d'antes tão-somente repousavas cada noite,
para logo, bem cedinho, no crepúsc'lo matinal,
a faina recomeçar.
Eu sei que tu não querias aquele ócio forçado:
teu vigor e majestade não se casavam com tal.
E na sombra calma e amena da mangueira te ficaste.
Mas é justo o teu repouso, para tu que labutaste,
por anos e anos a fio, enfrentando chuva e sol
da alvorada ao arrebol.
Descansa, carro de bois: é tempo de repousar!
E se hoje estás desprezado, não te importes,
pois p'ra mim és qual um rei, um vero herói do passado,
sonho vivo qu'inda pulsa no meu peito e em minha alma,
onde tu'ausência deixou, qual nas estradas de chão,
sulcos profundos e amados.


A.C.W.C.de Azeredo

Saudades de Campos (poesia)

        SAUDADES DE CAMPOS

Saudades de Campos, dos dias da infância,
da praia, do horto, das sombras da estância.
Saudades de Campos, da beira do rio,
da praça, da igreja, das tardes de estio.
Saudades de Campos, dos bondes abertos,
das ruas de pedra, dos becos desertos.
Saudades de Campos, da rua do Gaz,
do estádio, da escola, da rinha, do cais.
Saudades de Campos, do nosso jardim,
do cheiro inebriante do pé de jasmim.
Saudades de Campos, das aves em bando,
das rolas no lado da casa, ciscando.
Saudades de Campos, do céu estrelado,
das torres de usinas, do azul esfumado.
Saudades de Campos, das férias inteiras
passadas na roça co'as duas palmeiras.
Saudades de Campos, dos dias de festa,
da Lira de Apolo, do som da seresta.
Saudades de Campos, do sol no poente,
nos meses de agosto deitando pungente.
Saudades de Campos, das noites de frio,
Co'a lua boiando nas águas do rio.
Saudades de Campos, do vento nordeste
varrendo a cidade, do seu sopro agreste.
Saudades de Campos, do trem de Atafona,
da cana p'ra a usina levada em cambona.
Saudades de Campos, do plaino sem véu,
das canas jogando penachos p'ra o céu.
                                   ..........................................................................
Distante, exilado, há anos já tantos,
invadem-me a alma saudades de Campos.

                                                                A.C.W.C.de Azeredo

Pirinas (crônica)

PIRINAS

            Um apito rouco pediu permissão para entrar na barra.
            Seu Saul levantou as bandeirolas no mastro do pontal.  Era ele o entendido.
            Pirinas.  Couraça preta na água barrenta.  Atrás, a Convivência.
            "Onde é que tem pimenta, da boa?" perguntou, gorro vermelho, barrigudo, blusa bege com gola de goleiro, calças folgadas, o cozinheiro de bordo.
            Com ele, uma comitiva pisando a areia grossa e solta de Atafona: um verdadeiro bando de heróis saídos de uma escuna de sonhos.
            Os olhos das crianças  — debaixo da nogueira de hastes longas, saboreando-lhe a sombra farta, sentadas no tosco banco onde Chico Dantas costumava tomar pinga e esbravejar —  pareciam devorá-los: encantamento!
            Saídos das páginas de Júlio Verne, se abasteceram.  Tomaram conhecimento de tudo.  Até a estação esverdeada da maria-fumaça foram ver.
             “Eta, pimentinha quente! Malagueta...", soltou o barrigudo de gorro vermelho.
            Parecia um calidoscópio que rodasse nas mãos de uma criança a visão do Paraíba:  triângulos brancos se entrelaçavam, corriam um ao lado do outro e, ao mesmo tempo, uns p'ra cá e outros p'ra lá.
            "Tem rapadura?", perguntou o cozinheiro na vendinha do pai de Vavá.
            "Cabô...  Vê si tem no Eduardo Gômi...  Ali na isquina, naquela subidinha, às isquerda...  Aliiiii...", sinalizou com o beiço o pescador vendeiro.
            As pranchas, as velas brancas enfunadas, coalhavam as proximidades da foz.  Vinham de cinqüenta quilômetros rio acima, desde as rampas empedradas defronte aos armazéns da rua dos Andradas, onde gigantescas esculturas negras reluzentes ao sol contrastavam com a alvura dos sacos de açúcar que levavam à cabeça até às pranchas.
            O dia-a-dia em contraste com o devaneio.
            A couraça foi aos poucos mergulhando, até sobrar só uma faixa fina que se alargava na frente, na proa.
            Guardou-se o calidoscópio.
            Após, um apito rouco pedindo licença para sair da barra.


            Seu Saul levantou as bandeirolas no mastro do pontal.  Era ele o entendido.
            A proa apontando o leste, o Pontal a bombordo, lá se foi o gorducho de gorro vermelho e blusa de goleiro, deliciando-se com a pimenta (mas sem a rapadura, que teve preguiça de ir até o Eduardo Gômi).
            A carga era doce como doce era a água barrenta da embocadura.
            Em pé, na praia, os olhos das crianças andavam lentamente até às bandas do horizonte: a couraça se fez um traço e o traço um ponto, que depois se fundiu à comprida linha tenuemente abaulada do horizonte, para trás da qual pulou por fim.
            A escuna encantada voltara às páginas de Júlio Verne.
......................................................................................................................................................
            Foi Seu Saul quem disse: "Foi na costa de Macaé...  Sabe, aqueles apitos mais fortes, aquela fumarada mais grossa quando ia saindo da barra?  Era um banco de areia..."
            A couraça de aço está agora encravada no lodo do fundo, debaixo das águas verdes e salgadas, mas por um momento feitas doces, quando molharam os sacos alvos de algodão.
            "Mas o gorducho do gorro vemelho conseguiu salvar a pimenta..."  Pelo menos foi o que também disse Seu Saul.

                                                                                         A.C.W.C.de Azeredo

O Farol de Atafona (crônica)

O FAROL DE ATAFONA

            O farol já não existe.
            Lembro-me dele e, ao lembrar-me, uma emoção doída me perpassa da garganta ao coração.  Esse mesmo coração que, ao vê-lo a primeira vez, teve a reação de toda criança que, no sopé de alguma colina, fica conhecendo um farol de verdade plantado no seu topo.
            Era um cilindro magro, alto, cinza e branco, no cimo de uma elevaçãozinha inexpressiva, ponto de transição entre o prolongamento da Avenida Atlântica e a faixa rasa e quase plana que era o Pontal, aquela extensão de areia coalhada de salsa que espeta e que ia correndo entre o mar e o Paraíba, para acabar morrendo no encontro deles, enxergando já bem perto a Convivência.
            A partir do farol, quantas figuras entrelaçadas, acotovelando-se por não poderem ocupar o mesmo espaço da memória ao mesmo tempo.  É como se, de suas grimpas, eu olhasse em redor até onde alcançava a vista e cobrisse num relance todo o universo de Atafona, um universo acanhado, é verdade, mas suficientemente grande para abrigar um mar de emoções, que o efeito multiplicador do tempo transformou num oceano de saudades.  Naquele tempo, Atafona não ia além, para as bandas do sul, do sobradinho no outro extremo da Avenida Atlântica e, no poente, das cercanias da farmácia  — depois açougue —  de Seu Pomada.
            Foi o mar.  Eu não vi.  Mas disseram que foi o mar.
            E pensar no quanto ele se afastara das últimas casas, deixando atrás um areal que causticava nossos pés na longa travessia até chegarmos ao mar, ora verde e salgado, quando soprava o vento sul, ora abóbora e doce, ao bafejo do nordeste, que trazia a torrente despejada pelo Paraíba.  Nessa vastidão entre as casas e o mar, um teco-teco pousou um dia perto do farol: rodeamo-lo e, quando o piloto desceu, foi como se fora, na nossa imaginação, um herói da segunda guerra então recém-finda.
            Toda a infância, o mar ficou distante.  Esse vaivém é cíclico, dizem, e nos dias de nossos avós, quando Atafona era praticamente só aquele correr de casas no alto que vem após a depressão que mora defronte à Pensão Ivan, o farol ficava junto delas.  Mas, com o afastamento paulatino do mar e o crescimento da vila em sua direção, o velho veio a ser derribado e se erigiu um novo farol, no começo do Pontal.


            Víamo-nos todas as férias, e nossa intimidade foi, assim, crescendo na sucessão dos anos.  Nas noites escuras do tempo em que a eletricidade ainda não havia aportado em Atafona, mergulhávamos nossos pés, em disparada, na areia solta de seu morrinho, iluminados pelo estreito facho de luz de uma lanterna de pilhas, porém só nós, as crianças.  Mas, quando havia lua, lá ia a família toda, em marcha calma de passeio, estalando, os pequenos, nos dedos, cigarrinhas de metal compradas dos camelôs; como o caminho para o centro passasse ao lado dele, olhávamos cá de baixo a luz fantasmática do luar, que emprestava ares de mistério à singela majestade do farol.
            De outras praias da redondeza, aquele piscar cadenciado mostrava, em noites propícias, no meio da escuridão, onde estava Atafona.  Às vezes, dava até a impressão, pelo desenho da costa, que o farol estava dentro do mar.
            Mas o farol já não existe e sua luz silenciou na treva noturnal.  Já não podemos mais piscar para ele nem apontar Atafona às crianças, quando anoitece.
                                   
A.C.W.C.de Azeredo

Nota: crônica escrita quando ainda não havia sido erigido o novo farol.

Atafona (poesia)


ATAFONA

Há um lugar
onde as noites são fagueiras,
onde crescem pitangueiras,
onde o sonho foi morar:
é um rincão
em que tudo é poesia
e o sabor da maresia
se esparrama pelo ar.

Lá, um farol,
no alto de uma elevação,
ao piscar, manda um clarão
para o horizonte do mar.
Mar engraçado...
muda a cor segundo o vento:
ora verde, ora barrento,
conforme o vento soprar.

Noite de lua:
olho a espuma esbranquiçada
e contemplo a clara estrada
na minha frente a boiar.
Ah! quem me dera
passear na lua cheia,
me distanciar da areia
e invadir o escuro mar...

Nela viajo,
mar adentro, em pensamento,
e percebo num momento
quanto amo tal lugar.
Oh! praia amiga...
quantos sonhos vêm à tona
no mar da minha Atafona,
que eu sempre hei de amar...
                                                              

                                                                                        A.C.W.C.de Azeredo

Rio Paraíba (poesia)


RIO PARAÍBA

 (Sonetos shakespearianos)


I - O barquinho

Nos longes do rincão onde eu nasci,
um rio corre manso para o mar.
Desde o momento em que primeiro o vi,
a infância mais tenra a me embalar,
a suas águas barrentas se ligou
minh'alma, que daquela hora em diante
em momento algum jamais deixou
de escutar, inebriado, o radiante
farfalhar de suas águas nas marolas,
que vinham e batiam nos meus pés
- tão suaves como o arrulhar das rolas -,
e mais tarde banhavam o convés
do barco de brinquedo que, fagueiro,
cavara num tolete de pinheiro.

II - Os cais e o bonde

Nos longes do rincão onde eu nasci,
um rio corre manso para o mar.
De suas margens eu tantas vezes vi
Um vai-e-vem de pranchas sem cessar.
No correr das muralhas que o ladeavam,
No trecho em que a cidade se plantou,
velhos cais, na infância, me encantavam!
Só de os lembrar, minh'alma suspirou...
Relembro os bondes que, ao sair da praça,
corriam lado a lado junto ao rio;
e eu, em seu banco, em estado de graça,
sentindo doce e mágico arrepio,
era beijado pelo sopro agreste
e sibilante do vento nordeste.


III - As cheias

Nos longes do rincão onde eu nasci,
um rio corre manso para o mar.
Mas, de tempo em tempo, em frenesi,
suas águas a se agigantar,
tornadas mais barrentas e revoltas,
levavam troncos, folhas em seu bojo,
pedaços de casebres, tábuas soltas,
que a enchente arrebatava com arrojo.
Levantaram-se então diques de pedra,
desde lá longe e até ao Matadouro,
para conter o gigante que medra,
qual boiada em incontido estouro.
Mas a água, esbordada, se alastrou,
como lençol, nas ruas, que ocultou.


IV - A saudade

Nos longes do rincão onde eu nasci,
um rio corre manso para o mar.
Na alma, dor terrível eu sofri,
ao ser forçado a dele me afastar.
Nem sempre as veredas que a vida
nos traça acompanham o mesmo rio
junto ao qual a infância foi vivida,
e onde um batel era como um navio!
E hoje, tão distante do seu leito,
possuído por doce devaneio,
mesmo se confrangendo o meu peito,
como se mergulhado no seu seio,
vejo as pranchas, traqüilas, rio arriba,
nas águas do meu doce Paraíba.



                                                                                                                                                 A.C.W.C.de Azeredo

Atafona (crônica)

A T A F O N A

                        A lembrança mais remota de Atafona é um quase-sonho, em que não sei se os doces fantasmas que perambulam, indefinida e fantasmagoricamente, nos escaninhos de minha memória saíram do papel esmaecido da foto da "Vila Gabi", ou se são mesmo recordações do fato retratado à sombra do pé de "anoza", onde um menino de caracóis na cabeça se sentou no peito cabeludo de um herói deitado de costas na areia.  As janelas, hoje amarelas, não sei que cor tinham então.  Só me lembro da cor do riso do homem deitado, a um tempo triste e retumbante.  A sombra, como todas as sombras, tinha tons de calmaria; nela repousavam também Geórgia e Celuta, esta de olhos fechados, olhando para cima, num gesto de riso, a mão esquerda levada à boca;  no olhar de Geórgia, uma expressão intraduzível, a cuja lembrança me aflora um sentimento de compaixão mesclada de ternura.  Há também o bordão do homem com blusa vinho de gola de goleiro: parece-me que ele brincava de esconder-se atrás do poste...  parece...  não sei...  é difícil dizer se me recordo...  ou se era o outro retrato...  afinal, raramente a memória me leva para antes dos seis anos.  Pouco importa, uma vez que aconteceu.  E nas areias grossas de Atafona.
                        Entrelaçado ao nome de Atafona, paira também o jeito nervoso de Seu Sílvio, que gostava de corridas de cavalos e tinha um Austin preto.  Gaguice possuía um ar bonacheirão, e a imagem de tia Quita era franzina.  Tinham uma casa no Pontal: a "Vila Marta", com portas e janelas da cor da goiabada;  o nome encimava as duas janelas da frente que, como as demais, eram de duas bandeiras e sem venezianas.  Vizinhava, pela direita, com a vendinha de Seu Pedro   - que, por sua vez, dava, pelo outro lado, para um arremedo de pracinha, onde o fervor da fé que se apossou de Seu Saul, no mar encapelado que prometia levar-lhe o barco de pesca ao fundo em memorável tempestade, erigiu uma capelinha.  Pela esquerda, a "Vila Marta" fazia divisa com uma casinha  - antes branca e suja -  cercada de areia e que mais tarde  - ainda branca, mas agora limpa -  batizamos de "Vila Rozane" (em Atafona, as casas eram como gente: tinham nome também).  Atrás, as encostas da colina de areia, que tantas vezes tentamos remover e que teimava em lá ficar cobrindo a cerca divisória da viela para onde dava a casa do Chico Dantas, pescador semi-aposentado e sempre mal-humorado.  Nessa casinha de cinco cômodos, a "Vila Marta", já não mais os fantasmas da "Vila Gabi".
                        Euforicamente saboreada na mente, a cada ano, a antecipação das imagens das férias.  Pouca coisa se alterava no ritual.  O baú de ferro ia na frente, no carrinho de mão do freteiro.  Parte da turma o acompanhava a pé.  Antecipadamente, iam também o saco de açúcar cristal e outras coisas mais pesadas e desajeitadas de levar.  Eram despachados na Estação do Saco.  Pequenos tíquetes de papelão azulado davam passagem, pela borboleta, para a calçada, da altura dos patamares dos vagões de madeira da Leopoldina.  Carregadores fardados andavam apressados, de um para o outro lado, e a multidão se dava esbarrões no calçadão.  Parte daquela pressa devia ser emoção da viagem (pelo menor o era para o grupo do baú).  A hora do "control" da Leopoldina era considerada a oficial pela cidade, que para lá telefonava para tirar as dúvidas pertinentes.  A enorme balança marcava o preço do despacho, e o baú e seus anexos saíam das vistas da gurizada, que só os tornaria a ver no fim da linha, na estação de Atafona.  Os ponteiros tomavam posição no mostrador de louça.  Apitos do chefe da estação e do trem.  Toques de sinos.  Uma onda de vapor escondendo a locomotiva, que bufava para pôr em movimento a composição.  Nos bancos de madeira da segunda classe, os ensaios de rapazes guardavam lugar para os outros, que pegariam o trem na estação da Avenida Pelinca.
                        Já no Passeio Municipal, mais perto da Pelinca, olhares ansiosos pela janela do último carro.  A máquina, seguida dos vagões, mergulhava no arco que decorava a parede de tijolos expostos da estação e que tragava as baforadas de fumo jogadas pela chaminé bojuda da "maria-fumaça".  Os carros de passageiros estacionavam defronte às altas calçadas, uma de cada lado e cujas extremidades desciam em rampa até o chão.  A grande dificuldade era a camuflagem de Top, desacostumado da focinheira, que portava a contragosto sob panos para dar a idéia de um embrulho ou coisa que tal.  Para esconder os ganidos que gemia o pobrezinho  - a quem a Leopoldina fatalmente negaria o direito de viajar condignamente num carro de passageiros, caso o descobrisse -,  as crianças se punham a emitir sons similares, disfarçadamente e com beatas expressões no rosto.  Novos apitos e badalares de sinos, novas baforadas de fumaça preta, e parecia que éramos um metrônomo gigante, saindo do "largo" e que só não chegava ao "presto" porque, não muito longe, logo depois do Cine São José, a velocidade tinha de ser reduzida para, na bifurcação da guarita verde, tomar a esquerda, numa curva aberta.
                        Era só perto do Matadouro que começávamos a acompanhar o Paraíba, que não mais nos deixaria o resto da viagem e que em Atafona se tornaria nosso companheiro de brincadeiras no dia-a-dia.  Suas ribanceiras eram tão íngremes em Martins Lage, e chegavam tão perto dos trilhos, que, das janelas do trem, a um simples olhar vertical para baixo, se viam suas águas barrentas.  Aquilo nos dava medo!
                        Na Usina Barcellos, bem no meio da viagem, chamavam-nos a atenção as três (ou eram quatro?) ricas casas dos usineiros, diziam que em estilo americano, algumas com dois andares.  Contrastavam com as dos empregados, miúdas e baixas, brancas e enfileiradas, de telha canal e geminadas.  Era a época da safra da cana, e as chaminés, dia e noite, jogavam fumaça e espalhavam fuligem por tudo.  Tanto ali como em Martins Lage, o cheiro forte da fermentação, no processo do fabrico de açúcar e álcool, de longe nos alcançava, tornando-se sobremodo envolvente defronte àqueles pontos.
                        A fila de palmeiras que surgia lá longe e ia aos poucos crescendo anunciava a proximidade de São João da Barra, em cuja estação, também de tijolinhos, nunca faltavam os vendedores de bolinhos de arroz e "cocadas de abóbora".  Só mais três quilômetros, e estaríamos em Atafona!
                        A areia-do-viana, fina e branca como açúcar refinado, enchia os vãos entre os dormentes e se estendia, à esquerda, até a estrada de rodagem de chão batido, e, à direita, até a macega, onde as pitangueiras coloriam com minúsculos pontos vermelhos a verdura fustigada pelo sol e brotada num solo pobre.  O cheiro da maresia, embalsamando o vento nordeste que varria o vagão, era a especiaria mais fina!  A pequena reta final começava na curva branca da casa pequenina onde, um dia, Vozinha, depois de lavar a louça, jogou o alguidar e ficou segurando a água, quebrando-se aquele ao bater no chão (galhofa tantas vezes repetida por Papai em meio a gargalhadas!).  Ao escurecer, o trem chegava a Atafona.  O desembarque era movimentado.  Pescadores levavam a bagagem pesada para a canoa  - estacionada no porto a poucos passos da estação -que a levaria até a porta de nossa casa, no Pontal.
                        Parecia longa a caminhada a pé, mesmo cortando caminho pela rota arenosa da esquerda, que passava rente à Igreja da Penha, tão alva e em cujo adro amiúde brincávamos.  Ainda no largo da estação de pó de pedra esverdeada, a velha e comprida casa com telhas encardidas para onde Dona Conceição anualmente ia, no verão.  Depois, à esquerda, a "Nossa Casa", onde os Rebel se instalaram certa vez.  Pouco adiante, também à esquerda, a oficina de Seu Brás, cujo filho o ajudava na ferraria e costumava cantarolar, ao ritmo da bigorna e acompanhado do bufar intermitente do fole:  "Chegou o General da Banda, chegou! / Chegou o General da Banda, e já vai!".  Um longo trecho vazio de casas  - terminando no morrinho de areia que sempre subíamos, só para em seguida descê-lo correndo, em disparada, infindas vezes -,   e chegávamos à rua de chão duro por onde viriam Vozinha, Geórgia, Dona Branca e as crianças que preferiram o  trecho longo porém mais firme.  Naquele ponto, dois marcos:  de um lado, a casa da professora que diariamente atravessava a foz do Paraíba para dar aula na Convivência;  do outro, a do Eduardo Gomes, que transformara a garagem  no barzinho em que gastávamos parte de nossos minguados réis em soda limonada;  entre tais marcos, uma depressão, onde se instalara a rua, cujo leito era, a partir dali, a areia firme que a maré alta molhava cada dia.
                        Era o começo do Pontal.  Seu ponto culminante  - uma elevaçãozinha de uns cinco a sete metros -  fora escolhido para a instalação do farol cinza e branco que piscava à noite para os navios que eventualmente passassem ao largo.  Só descansou um pouco nos tempos da guerra, quando o "blackout" não deixava sequer acender fósforos ou lanternas na praia e mandava as portas e janelas das casas permanecer trancafiadas.
                        Eram sempre os mesmos veranistas no Pontal.  Suas casas ladeavam as dos pescadores:  a do Professor Achiles chamava a atenção pela varanda que quase a rodeava toda;  a casa nova de Seu Sílvio, pelos dois andaraes;  a dos Tâmega era aconchegantemente escondida no fundo de um quintal arborizado;  os Duncan fizeram uma perto dos coqueiros do cais da Niña  - o barco de pesca da Pensão Ivan, cuja chegada era mais concorrida que festa de padroeiro  (um dia, trouxeram, amarrado ao seu lado, um cação gigante, maior que a lancha e cujo esqueleto por muito tempo ficou na praia do rio, contando aos incréus o grande feito).
                        Sumamente singela, uma casinha branca daquele trecho não chegava a chamar a atenção, com suas janelas azuis.  Deve ter sido outrora venda, a julgar pelas duas janelas da frente, com peitoris mais novos que os velhos umbrais e a verga, indicando ter sido ali outrora lugar de portas;  o calçadão acimentado da frente, ocupando toda a largura da casa, confirmava a teoria.  Seu vasto quintal era um montão de areia.  Tal era a "Vila Rozane".
                        Defronte a nossa casinha, o Paraíba lançara um braço, cheio de piripiris e lodo, que chamávamos de maré e onde tantas vezes pescamos, ora jogando puçás dos batelões, ora com a rede de arrastão.  Na vazante, a parte arenosa vinha à tona, criando pequenos canais sinuosos, onde navegavam nossos barquinhos de brinquedo, habilmente cavados por Ivan nos toletes de pinho canadense saídos de caixotes de máquinas Singer.
                        Nossos habituais companheiros de brincadeiras eram filhos de pescadores.  Um desses pais, que se dizia também barbeiro, com tanta habilidade manuseava o instrumental da segunda profissão que, uma vez, deixou cair a navalha aberta no pé esquerdo de Maurício, o que se tentou remediar passando mercúrio-cromo.  Vavá e Carlinhos, seus filhos, eram uma dupla de nativos que se incorporou sem dificuldade ao nosso grupo.  Um dia, Ivan fez um carrinho de mão de uma só roda, empreendimento ao qual se associaram Marlon e Milton, outros dois irmãos praianos, de cuja casa só se via o telhado de sapé (o resto tinha sido quase todo escondido pela areia soprada pelo ímpeto do vento nordeste que,  a partir dali, vai varrendo toda a vasta Planície Goitacá);  esse carro nos trouxe uns bons trocados, com o transporte de pequenas bagagens, que tomávamos a frete na chegada do trem, um dos acontecimentos mais chiques de Atafona;  mas tudo era gasto em limonadas ou em doces coloridos e roscofes.  Na Avenida Atlântica, uma noite fiquei no "ora veja", quando a moeda que me coube na partilha dos honorários caiu na areia e se perdeu na escuridão.  Eram escuras as noites de Atafona.
                        Atafona se me afigurava a morada das estrelas, que em Campos já dificilmente se viam.  O breu da noite realçava-lhes o esplendor do brilho e era o pano de fundo em que se desenhava a Via Láctea.  Olhando-as, pasmo e quedo, conversava com elas.  Imperavam na imensidão só delas.  Não se viam, então, a areia e o mar, que no entanto sabíamos ali estarem sob nossos pés ou neles batendo.  Altruístas, as estrelas minguavam de tempo em tempo seu fulgor, assumindo o lugar de súditas da Lua Cheia.  Íamos ver emergir a rainha da noite, que, veloz no início, logo assumia a delicadeza do andar nobre e calmo com que subia para as grimpas do céu, assentando-se afinal no trono de seu reinado.  Agora, podíamos enxergar nossos pés, a alvura pálida da areia e uma estrada luminosa boiando nas águas do mar.
                        Os anos fizeram Atafona crescer e aposentar os lampiões e a poesia.  Há quem gabe o progresso que maquiou sua face, outrora singela e pura.  Não eu.  Plantaram postes, esticaram fios e acenderam lâmpadas.  Mas apagaram as estrelas de Atafona.


                                           Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo.
                                           Brasília, 1980.