UM MURO NO PLANO
Não fora o impacto do tom forte, e seria um belo muro, ainda mais que faz uma curva suave no ponto em que dobra a esquina por onde habitualmente passo, o que dá a idéia da poética continuidade que os trilhos dos trens inspiram, mesmo quando só se vêem trechos deles. É ocre, fino, não muito alto, inteiriço e sem pilares ao comprido de seus aproximadamente quarenta metros, novo ainda e bem conservado. Não gosto de amarelão, não gosto daquelas superfícies lisas e sem as interrupções periódicas de pilares, não gosto das linhas arquitetônicas modernas. Mas, com tudo isso, aquele muro é como um ímã que me puxa com enorme força e me obriga a andar na calçada larga ao lado dele. Atravesso, instintivamente, a rua sempre que passo ali, só para ficar perto de meu muro. Mas me pergunto: por que meu muro? se não me agradam aquele ocre; aquele desenho; aquela ausência dos rebocos esburacados que deixariam ver, como em outros muros, janelas em que pedaços de tijolos avermelhados costumam contar histórias; aquela ausência de sulcos que desenham imaginários cursos de rios cheios de afluentes e de tributários desses afluentes, numa ramificação estupenda, qual nos mapas escolares, sulcos que serpeiam por onde costuma haver só resquícios de cal; aquela ausência de contrafortes, que deveriam estar abraçando a lâmina frágil do meu muro? E insisto em perguntar-me: Por que meu, se os que considero meus são os muros das ruas de minha infância, com que tantas vezes travei diálogos mudos nas minhas caminhadas de menino?
Morava um português na Rua do Aquidabã, Seu Manuel Pinto. Aliás, muitos portugueses: Dona Mariquinha e Dona Cândida (duas velhinhas em quem a passagem do tempo não conseguiu esmaecer o sotaque ultramarino), Seu Manuel ex-motoqueiro (e um dos fundadores do Moto Clube de Campos), Seu Manuel oleiro (dono do que chamávamos de Fábrica de Barro, onde se vendiam apitos de garrafinha que, quando cheios d'água, trinavam que nem passarinhos), Seu Frias (dono de uma camisaria na Rua Santos Dumont).
Lembro-me do muro do terreno baldio ao lado da ampla casa do Manuel Pinto, esta com uma varandinha na quina do lado direito e um jardim na frente; e me recordo também do dia quando, ao voltar para casa por aquele caminho, como de costume, não sei por que fado, tomei um daqueles malfadados sustos que parecem fadados a ficar para sempre incrustados na memória: um monte, alto e pesado, da areia grossa do Paraíba estava recostado no tal muro do terreno baldio pelo lado de dentro e forçava-lhe a estrutura, de tal modo que, ao passar eu ali, ruiu com a trepidação de meus pés e foi ao chão, inteirinho, de uma só vez, com um estrondo abafado, que por muito pouco não me atinge, mas que me deixou lívido e ofegante.
As acácias rosas da Rua do Aquidabã, perfiladas na extensão das calçadas onde deixam cair bagas pretas, espalhavam seus galhos, que faziam uma sombra benfazeja e alargada em cima delas e dos paralelepípedos da rua, galhos tão baixos por vezes, que chegavam a roçar nos carros mais altos.
Das três ruas que me levavam ao centro, era a do Aquidabã a mais poética e o caminho mais natural. A do Mercado também tinha, inegavelmente, seus compridos e envelhecidos muros e seu encanto, mas, além de exigir que se desse uma volta maior para ir à Praça de São Salvador, sua poesia era mais áspera, sem cores e sombras, meios-fios de um lado só e leito de chão esburacado e que servia de depósito de lixo para alguns relapsos funcionários da prefeitura, que só mui raramente capinavam seus matagais. Quanto à Rua Sete, porque artéria para o Turfe, já era então irrequieta, nervosa, barulhenta, o que talvez me afastasse um pouco dela.
Uma das coisas que mais me chamavam a atenção na Rua do Aquidabã eram exatamente seus muros, cheios de encantos diferentes e que ainda ali havia em respeitável quantidade naqueles dias. O do terreno de Seu Castro era alto, pomposo, apesar de sem reboco, grossos pilares encimados por uma espécie de capitel. O dos Lacourt dificilmente seria escalado por algum ladrão de galinhas, de tão alto, e nada se podia ver atrás dele, senão as copas de reverendas mangueiras, sendo guarnecido por gigantescos portões de ferro revestidos com folhas de flandres, sem frestas. Os dos fundos do Palácio do Senhor Bispo também davam para a Rua e chegavam a parecer sinistros, com seus muros quase tão altos quanto os sólidos cômodos ali construídos na linha da calçada, com torreões pontiagudos e cuja saída era uma portinhola que, de tão miúda, mais parecia uma das agulhas dos muros de Jerusalém, por onde mui raramente passava alguém, e mesmo assim só encurvado, geralmente um padre, de quem o traje preto mais mistério parecia infundir ao conjunto, já pesado, já funesto. E o que dizer dos muros da vila onde moravam, entre outros, Seu Frias (o camiseiro), "Catalão" (o filho de um toureiro espanhol e que era chofer dos ônibus da Santo Antônio) e Seu Rebel (o da sapataria da Rua João Pessoa)?: sobre uns quatro palmos de tijolos, altas grades de ferro roliço, terminadas em setas, emprestavam-lhes uma imponência que se casava harmoniosamente com as linhas das casas que eles guarneciam, estas ornadas no alto com almofadas de alvenaria desenhadas e emolduradas com requinte, as paredes assentadas sobre altos porões que olhavam para os jardinzinhos através de gateiras decorativas bordadas em ferro.
Mas não eram, os muros da Rua do Aquidabã, como as paredes das casas das ilhas gregas ou do Algarve, sempre brancas, caiadas e limpas: eram, sim, deixados ao tempo, sendo o mais encardido dentre eles o do vasto terreno vazio da esquina da Rua do Ouvidor, coalhado de cacos de vidro pontudos em cima, nos quais a luz do sol saltitava enquanto eu cortava o cabelo no salãozinho do outro lado das ruas cruzadas e espiava pelo espelho do barbeiro os pingos e riscos de luz jogados para o alto sobre ele.
Retorno para os dias que correm e olho diante de mim: não vejo senão o muro ocre, feio, moderno. Cidade pobre de muros, este Plano não tem chãos particulares, onde as crianças guardem, debaixo das moitas de hibisco vermelho ou atrás das touceiras de banana-figo, seus brinquedos, para continuar amanhã a fantasia dourada das moedas de barro feitas por elas mesmas para ser o tesouro que o xerife vai proteger dos bandidos mascarados; e dos caminhõezinhos de madeira que rodam sobre tampinhas de penicilina enfiadas nas extremidades de eixos de arame cuidadosamente desempenados pelas batidas da cabeça da machadinha, e que percorram as estradas desenhadas no quintal.
Ah! o muro do fundo do meu quintal, que o passar dos anos foi abaixando... Ah! o mundo encantado que havia por trás daqueles tijolos mal cobertos por uma argamassa já então velha: as árvores do terreno de Seu Castro eram aos nossos olhos uma floresta virgem, e os cachorros que latiam entre seus troncos eram feras de Bengala, da África, da Tasmânia...
Olho meu muro ocre, mas já não mais ouso perguntar-me por que o chamo meu. Quedado, o contemplo, a ele, único muro que vem ao meu encontro em todas estas cercanias faltas dos muros que os desenhistas desta Capital se esqueceram de prever em seus projetos, talvez porque nunca tivessem guardado um carrinho de brinquedo atrás de alguma moita de bananeira, nalgum quintal particular cercado de muros. Talvez – quem sabe? – até mesmo por querer deliberadamente emprestar certo ar de aridez à cidade que não era deles.
Quando, agora, olho o muro que adotei, o que vejo não é mais o amarelão espantado, nem aquelas linhas modernas sem pilares, mas meu coração enxerga nele os mesmos muitos muros que desfilaram muitos dias, cheios de poesia, diante de meus olhos de criança.
Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo
Brasília, dezembro de 1983
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