O BEM-TE-VI
Era uma vez, na infância, um bem-te-vi:
ele chegara ao telhado do vizinho
(o céu ao fundo era todo inteiro azul)
e o seu canto dourado alçou-se em vôo;
e alcançou-me, quedado, olhando o alto,
onde por fim abraçou o anil do céu.
Um sol vibrante (era dia de verão)
no chão espraia um langor esbranquiçado,
meio fosco, que confunde a cor das coisas
cá embaixo, onde o chão e a pedra ardem.
E o bem-te-vi se apressou p'ra a goiabeira,
que estendia os braços p'ra o telhado,
num convite ao cantor à sua sombra.
Mais perto a mim, que o espiava da janela,
ele chegou-se, aprumado, irrequieto.
Nossos olhares então se encontraram
e passamos, em seguida, a conversar,
eu com os olhos e ele co'as três palavras,
só com as três que ele, únicas, sabia,
mas que encerravam todo o vocabulário
da fantasia dos sonhos de minh’alma.
Disse que vinha de voar nas redondezas,
vinha das bandas poéticas do mar,
e em canto altivo se pôs logo a narrar
o que ele vira em tão amadas plagas:
Falou então da planura
da Planície Goitacá,
tingida de um verde seco,
sobre o qual penachos brancos
pareciam flutuar;
das cambonas carregadas
que rangiam pelas trilhas,
dentro dos canaviais,
em demanda das usinas;
da fumaça que suas torres
soltavam de noite e dia,
espalhando tons de cinza
no espaço imenso do céu;
falou-me do Paraíba,
das linhas curvas traçadas
pelo curso de suas águas;
de suas margens viçosas,
onde árvores copadas
desenhavam sombra amena
nos tapetes de capim;
e contou-me das lagoas
espalhadas na macega,
das marrecas cantadeiras
que, assustadas, se evadiam
de suas águas em revoada;
das piaçocas que pintavam
de vermelho a umidade
da folhagem de suas beiras;
falou de São João da Barra:
uma igreja em cada rua,
ruas finas e espremidas
entre casas e sobrados
antigos, velhos, pacatos,
mas exalando encanto
e poesia em cada esquina;
da pracinha da cadeia,
defronte ao porto do rio
que, barrento, se apressava
para o mar, ali já perto;
dos bolhinhos de arroz
que a garotada vendia
na estação de tijolinhos,
enquanto no largo ao lado
umas carroças postadas
assistiam às manobras
dos comboios nos desvios
dos trilhos multiplicados;
veio depois Atafona
e seu farol que piscava
para as espumas do mar,
ora doce, ora salgado,
conforme o vento soprasse
ou do nordeste ou do sul...
Nisso, um ruído, surgido não sei de onde,
mandou de volta p'r’o céu o bem-te-vi.
E os anos se passaram. E os ruídos
se expandiram, e cresceram, e invadiram
sem clemência estes dias sufocados,
na hedionda tentativa de abafar,
sufocar e alfim matar a poesia.
Mas em meio a tal terrível remoinho,
venturoso é todo aquele que alça vôo
e acha refúgio nas sombras do passado,
onde um dia conversou com um bem-te-vi.
Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo
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