quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Pequena crônica de uma viagem ao Sul do Mundo


Pequena crônica de uma viagem ao “Sul do Mundo”

            Num dos invernos dos anos sessenta Zé Theóphilo, primo do Vô Carlinhos pelo lado dos Bello, foi nos visitar em Lages.  Afora o Rio, o lugar mais longe aonde ele já tinha ido antes fora a capital mineira.  Não foi pois de estranhar a reação que teve quando chegou de ônibus a Lages. Afinal, foi uma respeitável quilometragem percorrida desde a saída de São Fidélis, sua quente terra natal no Norte fluminense, e após ter atravessado por inteiro os Estados de São Paulo e Paraná e quase todo o de Santa Catarina. Ali no inverno lageano, a poucos qulômetros dos pampas gaúchos, Teóphilo exclamou tiritando e curvado de frio: “Terrinha longe... Esta terra aqui é o Sul do Mundo...”  Uns dias depois, ainda não acostumado com as rajadas de vento gelado que sopravam, ele dizia vez por outra: “Êta lugarzinho frio! É bem aqui que o vento Sul faz a volta”.
            Sempre achei que Theóphilo tinha razão.  Na verdade nem sei como consegui sobreviver ao frio que passei em Lages. Ao todo nove invernos, já que o tempo lá não se conta por anos, mas por invernos, e já que também, conforme era dito pelos próprios lageanos naquela época: “Aqui só tem duas estações: o inverno e a estação ferroviária”.  (Só depois que saí de lá é que construíram uma rodoviária digna desse nome.)
            Talvez soe incoerente um aposentado dizer que vai tirar férias. Não deixa porém de ser férias a simples mudança de ambiente e da rotina semanal, principalmente se isso acontece a propósito de uma viagem e se há uma praia no circuito. Foi o que aconteceu comigo. Fomos matar saudades do Sul. Por precaução no entanto não incluímos Lages no roteiro. Afinal, nunca se sabe... aquela história de “Sul do Mundo” e de “onde o vento Sul faz a volta”, meio que espanta a gente... ainda que seja verão...
            Em 27 de dezembro último estávamos chegando a Florianópolis. Pouco depois fomos ao Balneário Camboriú, onde passamos uns dias. Não era porém aquela Camboriú a mesma de nossas férias de antigamente, quando morávamos em Lages e íamos anualmente à praia: a cidade cresceu para os lados e para cima. E continua crescendo. Os fogos de 31 de dezembro, soltados daquela ilhazinha defronte ao centro, parecia que vinham bater na gente: assistimos de camarote, no nono andar, bem na frente da ilha. Bonito! Mais que isso: lindo, lindo! O mar é manso em Camboriú, e estava quentinho aqueles dias. Fiz castelo de areia com os netos e comemos milho verde e churros e muito peixe. Curiosamente, a prefeitura, por conta do turismo, paga salários a pescadores que, mais de uma vez por semana, lançam a rede de arrastão à tarde, a partir de barcos coloridos: é um espetáculo bonito, aquela fileira de bóias flutuando em curva, que se vão mexendo lentamente em direção à praia à medida que os pescadores, tombando o corpo para dar mais força, arrastam a rede para a areia, onde ao final da operação são contados os peixes recolhidos.
Depois cada família foi para seu canto e Helena Angela e eu nos dirigimos à pequena Angelina, distante uma hora de Florianópolis.
            A estada em Angelina esteve envolvida numa atmosfera de poesia, apesar do que nos levou até ali: uma pequena cirurgia a que se submeteu Helena Angela com um médico amigo de nosso filho que, mesmo atendendo também em Florianópolis, prefere operar no hospital de Angelina, do qual é diretor. A cidadezinha começa a impressionar antes mesmo de se chegar a ela. Poucos minutos depois de sair de Florianópolis, a estrada vai subindo aos poucos, à medida que se dirige para a região serrana, no interior do estado. Quando já em boa altitude, deriva‑se para uma estrada secundária que, mergulhando na Mata Atlântica, só faz descer num longo trecho em curvas grudadas que se sucedem com enorme rapidez, até chegar a um vale aprazível lá no fundo.             Lá embaixo Angelina é fim de linha: não existe nada além dela. A cidade chama a atenção pelo tamanho (é pequenina por demais...), pela "fisionomia" típica de cidade do interior (pracinha com coreto em frente à igreja e casas com ares de antigamente), pelo ar bucólico que a envolve (pastos e gado convivem com as casas esparsas), por sua população (gente afável que cumprimenta os desconhecidos, coisa rara nas cidades grandes), pelo capricho do povo (além de varrer a rua defronte das casas, planta flores até mesmo nas bordas das pequenas lavouras domésticas que olham para a estrada‑rua, bem como ao longo dos meios‑fios), pela absoluta fartura do verde (as encostas dos morros que circundam o vale gramado são totalmente cobertas pela mata) e pela neblina que esconde a cidade de manhã cedo.         O hospital de Angelina serve a toda sua vasta redondeza. Sua ordem, limpeza, capricho e bom atendimento devem ser creditados às freiras que o administram e que trazem o sotaque carregado da colonização alemã da região. Suas modernas salas de operação vieram da Alemanha, por influência das freiras. O repicar do sino da capela, nas matinas e às seis da tarde, dava um ar de nostalgia ao silêncio reinante em redor (o hospital, no alto de uma colina que ladeia a estrada-rua, é isolado do resto da cidade).
            Após uma semana lá, estivemos na casa do filho em Criciúma. Tomar café com leite e pão torradinho no Angeloni era um de meus programas favoritos. E também do Frederico, ali ou nos “shoppings”, cada vez que saíamos. Gosto de ver as ruas de Criciúma, de andar nelas, ruas de pedras que têm esquinas e calçadas protegidas por marquises, gosto de andar na frondosa sombra das árvores da praça da catedral... É uma sensação gostosa que me transporta em pensamento até Campos, onde nasci e cresci andando em ruas e praças e esquinas como aquelas.
            Curiosamente tal sentimento é bem marcante ali e em Florianópolis, próximo ponto do retorno da aventura cigana dessas nossas férias. Em Florianópolis, Helena Angela prosseguiu sua convalescença, na casa do irmão, plantada na encosta da Mata Atlântica. Enquanto o relógio antigo cantava na parede da sala de refeições, os canários cantavam no poste e nos fios em frente e nas árvores lá atrás. Ainda lá atrás, saracuras caminhavam com suas pernas compridas pelo riacho que, descendo o morro, faz uma curva para entrar no fundo do quintal: geralmente andando em grupos, cantam em coro um canto esganiçado e estridente que se ouve de longe. Como em Angelina, os galos cantavam de madrugada também ali no morro do Pantanal. Um dia, um lagarto gordo, de mais ou menos um metro, atravessou lentamente o asfalto: chamou minha atenção o espírito ecológico do motorista, que parou o carro para não atropelá-lo; e mais: como o lagarto resolvesse estacionar embaixo do carro, ele pacientemente esperou para arrancar só depois que o dito-cujo resolveu sair para concluir a travessia. Num descampado no câmpus da Universidade, ao pé do morro do Pantanal, garotos soltavam pipas, acendendo assim lembranças de meus dias de menino, quando nós mesmos, lá em casa, fazíamos as pipas que soltávamos nas férias em Atafona...
            Finalmente levantamos vôo de Florianópolis, deixando para trás a geografia daquele quinhão do “Sul do Mundo”, e trazendo, aconchegantemente arquivada na memória do coração, a recordação saudosa e nostálgica das inesquecíveis férias passadas perto de onde, como dizia Zé Theóphilo, “o vento Sul faz a volta”...
***
                       
                      Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo
                      Brasília, 23 de fevereiro de 2007

Em tempo: Alguém, a quem mandei também este relato, escreveu-me dizendo mais ou menos isto: “Caminhei com seus pés e olhei com seus olhos a poética cidadezinha de Angelina”. A isso, Helena Angela exclamou: “Só se for mesmo com  ‘seus’ olhos... Ainda bem que lá é tão escondido e de tão difícil acesso, senão as pessoas poderiam correr o risco de ir lá conferir... e acabariam se decepcionando, como aconteceu com a Vó Georgina em Santo Antônio de Pádua...”  Explico: quando eu ainda era jovem, resolvi certa vez, numas férias, conhecer Pádua, ‘famosa’ (!) estação d’água no interior do Estado do Rio; era no tempo quando as estradas para aquelas bandas ainda eram de chão; encantei-me com a pequenina Pádua, tão quieta, tão bucólica, tão poética; e escrevi para casa, como habitualmente fazia; Mamãe se encantou com a descrição e foi para passar o resto das férias comigo; três dias depois de chegar lá, no entanto, arrumou as malas e disse: “Meu filho, vou voltar para Campos hoje mesmo. Aqui não tem nada... a gente não tem nada para fazer aqui.”  Bem, para não correr o risco de vocês acharem que estou exagerando, estou mandando a seguir algumas das muitas e belas fotos que bati de Angelina. Se quiserem ver as outras, é só falar. E se quiserem ir lá e conferir... Bem... acho que Helena Angela exagerou...   A.C.




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