A PRINCESA E O MENDIGO
Ela transita no mundo que brota da magia das letras que contam histórias e levam quem as lê para onde queira quem as juntou ali. A idade é a do sonho, da primavera. Embalam-na as suaves ondulações das narrativas de Hesse, de Veríssimo, de José de Alencar. Às vezes, caminha ao mesmo tempo nas ruas e praças reais e nas dos devaneios fabricados pela fusão das letras com a primavera, em meio a imagens que vai compondo à medida que anda e que bem poderiam ser dos filmes de Truffaut. Lá vai a menina-moça, em direção aos degraus da passagem sob a avenida. As duas árvores no seu caminho, gêmeas, copadas, floridas, colorem de rosa e lilás um pedacinho da paisagem, o suficiente para fazer despertar emoções.
Na verdade, é um conjunto de avenidas, que correm paralelas, e a passagem subterrânea vem à tona entre elas. Os camelôs estão ali, plantados ao comprido do corredor, disputando pedacinhos do chão de ladrilhos creme, daqueles que escorregam em dias de chuva, que eles mesmos se encarregam de varrer e desinfetar dos alívios dos bêbedos de durante a noite. Geralmente se instalam só de um lado, mas nem por isso o espaço que sobra chega a ser suficiente para os transeuntes. Estes, além de ser muitos (que o tráfego de carros em cima é pesado, e movimentados os locais unidos pela passagem), vão parando, boa parte deles, aos apelos dos ambulantes e das mercadorias sem imposto, enquanto as acotoveladas e as paradas forçadas exigem calma de quem tem pressa. Ali, o caminho obstruído por alguma mãe com uma penca de filhos pequenos, que examina as roupinhas de chita. Mais além, domésticas flertando com os vendeiros, umas cheias de assanhamento e outras de timidez. Por toda parte, gente com a cara feia de quem não pode chegar tarde ao serviço e doentes que vão ao hospital ou voltam dele, uns enfaixados, outros engessados e outros ainda com os olhos tampados, alguns de muleta, e também crianças no colo do pai ou da tia; sem falar nos mais felizes, que vão sobre seus próprios pés e com os próprios olhos. Uns ambulantes se sentam no chão mesmo, nos trechos do túnel, ou nas amuradas nos locais que ficam a céu aberto, e jogam palitinho ou conversam fiado; outros são agressivos e quase forçam os passantes a transformar-se em compradores de bugigangas, dizendo até que o preço é tanto, mas que para eles deixam por menos tanto. Aqueles, bem pouco se lhes dá quer vendam quer não, e às vezes se espicham na grama, sob a sombra das espatódeas, ou até mesmo entre os mostruários, com um pano ou o chapéu sobre os olhos fazendo as vezes de noite, alienados da confusão, que a hora da sesta é sagrada. Já estes, até fiado vendem, com base na intuição e na observação acurada do jeito de quem cotidianamente passa diante de seus olhos. Perfumes, cintos, mochilas, espelhinhos, sandálias de plástico, calças "jeans", relógios digitais, enfeites para casa, calcinhas, santinhos, blusas de frente única, vestidinhos para meninas, enxugadores com o escudo do Flamengo, cuecas, camisetas com a efígie de astros e frases então em evidência, sapatilhas de crochê feitas na hora, retrozes e rendas (e lá se vão as rendas que o Governo não chega a ver: desde quando camelô paga imposto?...): tudo espalhado em cima de lonas ou de esteiras, ou de tabuleiros que com dificuldade se equilibram em cima de cavaletes mambembes, ou então pendente de cabides improvisados ou de cordinhas presas em batoques de madeira encravados nos vãos dos ladrilhos das paredes. Alguns camelôs, mais precatados, amarram dois cordéis na lona sobre a qual a mercadoria está exposta, cada um preso em duas extremidades opostas do mostruário, cruzando-se no centro, para facilitar a fuga sem maiores prejuízos, caso o rapa brote num repente.
É um fervilhar de gente, que dá gosto! Ali acontece de tudo: até mendigo dando esmola para outro mendigo já se registrou nos anais do corredor. Que melhor lugar poderiam escolher os pedintes para fazer ponto? Quatro costumam ser vistos ali: um velho cego e gordo, com ares de inocência e sinceridade, sempre acompanhado de umas crianças que o ajudam a caminhar; um outro, em cuja bengala se prendem uma buzina a pilha (que anuncia sua presença) e uma tabuleta onde se lêem seu endereço, para o caso de extravio, e o pedido: "Ajude o Cego"; um aleijado que, até para falar, o coitado, tem dificuldade; e, finalmente, um velhinho, mas não tão velho assim, que traz, enquanto o sol ainda não aquece suficientemente o ponto dos camelôs, um pano de saco para agasalhar-lhe as orelhas e a nuca, pendente do chapéu de palha ensebado, à moda da Legião Estrangeira. Sobre a idoneidade do segundo cego, paira um quê de dúvida: certo dia, ele foi visto, numa hora morta, contando discretamente a féria, após ter lançado, de trás dos óculos pretos, um disfarçado olhar de soslaio pelas cercanias, no qual, contudo, não conseguira captar a presença de alguém que o observava. Nenhum dos quatro pedintes é tão assíduo como o legionário, que deve ser filho ou neto de índio, a julgar pelos olhos amendoados, a tez bronzeada, o cabelo muito liso, a estatura mais baixa que mediana. As rugas dele são como marolas num lago batido por vento meio forte: uma ao lado da outra, enchendo-lhe a testa toda, que é um franzido só. Joga um olhar de piedade aos passantes e agressivamente balbucia um pedido de auxílio enquanto lhes estende uma baciazinha azul clara de plástico desbotada, cheia de arranhões produzidos pelas ranhuras das bordas das moedas. Dizem que o velho pede por vício, que ele é até rico, que tem poupança na Caixa... Ali está ele, presumível herdeiro dos tupiniquins, as sandálias havaianas que deixam totalmente à mostra pés imundos, paletó preto ruço de tanto uso e puído nos cotovelos, aparelhinho de surdez encaixado na concha da orelha esquerda, sim, ali está o legionário, de plantão, cumprindo seu expediente matinal, protegido por um guarda-chuva também velho, cujos furos são atravessados pelos raios do sol: o ângulo dos riscos de luz desenhados contra o fundo preto da copa lhe dirá quando for a hora de bater o ponto e dar um pulo para depositar na caderneta.
Nisso, a donzela dos sonhos de aquarela passa distraída defronte ao mendigo. Absorta em suas fantasias tom pastel, nem percebe a presença do legionário na amurada a lhe estender, abruptamente, a baciazinha azul. Quando ele fala então, num tom que lhe soa ameaçador: "Me dá uma esmola", ela se sobressalta e como que acorda. Aquilo tão de chofre não lhe dá sequer tempo de pôr as idéias no lugar, de analisar o contexto, e, confusa, se apressa a dar uma resposta, a única que lhe acode: "Não, muito obrigada!"
Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo
Brasília, 24.10.84
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