O bonde de Goitacazes no encontro das ruas dos Goitacazes e Ipiranga, tendo ao fundo o Externato Humberto de Campos
O BONDE DE GOITACAZES
Calmos, seguiam ambos: a década de quarenta e o Paraíba.
Talvez não tão lento quanto as águas barrentas que caminhavam rumo a Atafona, lá ia o bonde de Goitacazes ao seu lado, deixando atrás o casarão colonial do Banco Abelardo Queiroz, na esquina da praça.
Dentro do bonde, meus olhos de menino bebiam a paisagem vista daquele trecho, onde a largura do rio contrastava com a estreiteza da rua em que se plantavam seus trilhos.
A marcha era ainda mais retardada pela presença impertinente dos caminhões - carregando ou descarregando açúcar, subindo nos meios-fios, tirando finos nos outros veículos e no bonde - no trecho dos armazéns, nas imediações das Ruas do Rosário e dos Andradas.
Por entre os troncos das velhas árvores (três, se bem me lembro) em frente ao quartel, divisava-se a curva branca da Lapa, onde o Paraíba - que ali fechava a grande barriga que se estendia desde o Saldanha - afinava o curso.
Na esquina da Ouvidor, o bonde deixava o rio para trás, em demanda do palacete de Raoul de Thouin, sempre fechado.
Na Rua do Gaz, a bifurcação dos trilhos: Matadouro à esquerda, Goytacazes à direita. Era o canto mais caro do meu mundo; nascido defronte ao ponto do bonde, crescera ouvindo a música de sua marcha, na cadência dos encontros dos trilhos.
Parecia-me então bem mais larga a Rua do Gaz, apesar de só caber um carro ao lado do bonde: fantasia infantil.
De um e do outro lado, aqueles recantos e cenas que, imperceptivelmente, se iam entrelaçando na minha alma e formando um precioso patrimônio emocional que seria só meu pelo resto dos meus dias: a janela onde Seu Zizo coçava as gengivas vazias desde que perdera algures as dentaduras na beira do Paraíba; o açougue de Seu Nelson, que amiúde recebia a visita do bonde de carne, todo fechado, verde escuro, com uma porta no meio por onde desfilavam meios bois vermelhos nas costas de homens fortes que trajavam macacões outrora brancos; o armazém da esquina da Formosa, cujos picolés de uva mais pareciam sê-lo de água adocicada tinta de roxo; a padaria de pó de pedra, onde Seu Pedra outrora tivera um bar e em que, já então, pães tresnoitados contemplavam através dos vidros dos balcões a freguesia aborrecida; o estádio do Goytacaz com seus círculos olímpicos, pendentes entre pequenos torreões que ganhavam bandeirolas em dias de jogo e pouco abaixo dos quais as janelinhas gradeadas das bilheterias espiavam, dominicalmente, as enormes filas de torcedores; a vendinha onde habitualmente comprávamos mariola e lápis de pedra; o A-40 dos Passos, eternamente estacionado na sombra da árvore fronteira à casa deles; o Externato Humberto de Campos, em cujas carteiras encaixávamos, numa reentrância na borda, os tinteiros que levávamos de casa e onde mergulhávamos as penas de nossas canetinhas roliças; a campainha no frontispício do Cine São José, que tilintava ensurdecedoramente nos cinco minutos que antecediam a próxima sessão; a estrada do Capão e o sítio de Seu Lucrécio, poucos passos além do fim da linha. Tudo na rota do bonde de Goitacazes.
Poucos vestígios restam dos caminhos dos bondes de Campos. Talvez apenas pedaços de trilhos trazidos à tona aqui e acolá pelo desgaste do asfalto com que maquearam as ruas da cidade.
Ao vê-los recentemente, emocionei-me. Parecia-me, a pouco e pouco, penetrar através dos mantos do asfalto e do tempo... e ouvir o "Amanhã tem pão! Não tem, não tem!" dos sinos da Catedral nas manhãs de domingo que anunciavam o fim da missa... e marcar o compasso das retretas da Lira de Apolo, que escutávamos enquanto saboreávamos o cheirinho dos fornos do Pão Quente enquanto esperávamos, ali na praça, o bonde de Goitacazes...
Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo
Brasília, 19.2.79
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