Nuvens de pó
Defronte aos portões do Mercado Municipal, na extremidade do canteirozinho que fazia as vezes de estação rodoviária, a espera ansiosa pelo ônibus da Progresso de Campos, que, anualmente, nas férias de junho, me levava às Pedrinhas.
O turbilhão de pó que o ônibus amarelo jogava da estrada de chão para o ar, não obstante esconder a paisagem e o caminho, para mim embalsamava tudo de poesia. Mas, a partir da curva de Don'Ana, os paralelepípedos proporcionavam alguns quilômetros de pausa, até o açougue do Laerte. Do lado oposto à Farmácia Souto-Maior, olhando de esguelha para a esquerda, via-se aquela que, ao que parece, seria a única barbearia da vila de São Gonçalo, onde a máquina-zero mais mordia que cortava e onde exemplares da geração mais velha cheiravam rapé enquanto papeavam furado.
Mais pó. Na altura da capelinha do Ponto da Cruz, o ônibus derivava para a direita. E vinha, a seguir, a reta grande. Logo apareciam duas palmeiras pequeninas lá distante, que iam crescendo à medida que o ônibus avançava. Quando elas chegavam ao seu tamanho máximo, era, enfim, a fazenda, a velha Fazenda das Pedrinhas.
Uns dois metros de diâmetro por quase um de fundo, era o que media o tacho que pertencera ao falecido engenho de açúcar da fazenda em tempos de antanho e que, agora, debaixo de um pé de jamelão, abeberava o gado. (Aquele pé servia de mourão à cerca divisória entre o pasto e o canavial.) Os dois metros entre suas bordas se me afiguravam então uma extensão enorme, de talvez mais que três metros de hoje.
No fundo do pasto, o terreno subia, e lá se achavam, já no alto, as duas palmeiras, ponto de referência das Pedrinhas à distância. À esquerda delas, a uns cem metros, um arado de discos enferrujado gozava a aposentadoria na sombra farta e amiga do centenário pé de tamarindo.
Através dos pascigos e das estradas das carroças atapetadas de calhaus, ouviam-se trotes e galopes de faz-de-conta do cavalo saído do bambual da borda da roça, cortado com o facãozinho de "Dô" Gil. O porão raso da casa fazia as vezes de sua baia. Tãozinho, ele sim, andava em cavalo de verdade: o da entrega do leite, que o peão Amaro lhe emprestava vez por outra.
A uns trinta por hora, os "Vinte-e-nove" dominavam as estradas das redondezas. Aquela mesmice só foi quebrada quando "Dô" Gil comprou um Chevrolet preto, trinta e dois, que entreou numa festejada viagem a Tocos.
A muita fé da tia Iaiá e de Dona Ica no rifão "Santo de casa não faz milagre" fê-las trocar as respectivas imagens de São Gonçalo, p'ra chamar chuva, a fim de molhar a seca que já ia longe.
Oito horas tinha então, na ausência de eletricidade, ares de noite alta. Na escuridão de certa noite, chamaram da varandinha da frente: "Nhanhááá, ô Nhanhá, abre a porta! É a gente que 'tá aqui p'r'uma visitinha!" Abriu-se então a sala da frente, sempre fechada à espera de momentos mais cerimoniosos. Eram visitas da fazenda vizinha. Qual no velho oeste, o lampião pendente do forro por uma correntezinha, acima da mesa, foi baixado para iluminar a conversa da gente grande, enquanto eu, que dentro de minhas calças curtas tive permissão para participar, praticamente só escutava.
Como distração domingueira, a cvalgada em pêlo no fim da reta grande, em frente à Fazenda do Colégio, quando "Sô" Calmélio excedia a todos no entusiasmo das apostas. Dizia-se, entre a criançada, num quase sussurro, como se fora um segredo, que os Jesuítas tinham deixado um tesouro que dormia algures, no coração de alguma daquelas grossas paredes do sobrado da sede, em cuja capela anjos negros velavam o sono dos Barroso. Mas nunca jamais ninguém viu dito tesouro, apesar das incursões com talhadeiras parede adentro, cá, lá e acolá.
Balões e bandeirolas coloridos, milho verde, pipocas e batatas-doces. As emanações da fogueira acesa no meio do pasto atenuavam o frio da noite junina. Só mesmo o crepitar do fogo e dos traques conseguiam concorrer com a música dos grilos. Os dias devotados a Santo Antônio, São Pedro e São João eram infalivelmente comemorados na roça.
Éramos umas nove crianças, todos primos: juntos subíamos nos ingazeiros, dependurávamo-nos nas mangueiras do pomar de Vó Sinhá, varávamos pelos aceiros dos canaviais para fugir dos maribondos revoltos após a pedrada que espatifara suas casas, pegávamos carona nas cambonas que, de tão pesadas, cinco juntas de bois puxavam sob o comando de Seu Antonino no rumo da Usina São José. E brincávamos por toda parte enquanto a noite não chegava.
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Longe de me amofinar, nuvens de pó que hoje levantem voo e tudo envolvam acordam em mim, como num filme, as imagens das férias na roça, e diante delas meus olhos piscam. Insistentemente.
A.C.W.C.A.
Brasília, agosto de 19780