sábado, 10 de dezembro de 2011

Nuvens de pó (crônica)


Nuvens de pó

Defronte aos portões do Mercado Municipal, na extremidade do canteirozinho que fazia as vezes de estação rodoviária, a espera ansiosa pelo ônibus da Progresso de Campos, que, anualmente, nas férias de junho, me levava às Pedrinhas.
O turbilhão de pó que o ônibus amarelo jogava da estrada de chão para o ar, não obstante esconder a paisagem e o caminho, para mim embalsamava tudo de poesia.  Mas, a partir da curva de Don'Ana, os paralelepípedos proporcionavam alguns quilômetros de pausa, até o açougue do Laerte. Do lado oposto à Farmácia Souto-Maior, olhando de esguelha para a esquerda, via-se aquela que, ao que parece, seria a única barbearia da vila de São Gonçalo, onde a máquina-zero mais mordia que cortava e onde exemplares da geração mais velha cheiravam rapé enquanto papeavam furado.
Mais pó. Na altura da capelinha do Ponto da Cruz, o ônibus derivava para a direita.  E vinha, a seguir, a reta grande. Logo apareciam duas palmeiras pequeninas lá distante, que iam crescendo à medida que o ônibus avançava. Quando elas chegavam ao seu tamanho máximo, era, enfim, a fazenda, a velha Fazenda das Pedrinhas.
Uns dois metros de diâmetro por quase um de fundo, era o que media o tacho que pertencera ao falecido engenho de açúcar da fazenda em tempos de antanho e que, agora, debaixo de um pé de jamelão, abeberava o gado. (Aquele pé servia de mourão à cerca divisória entre o pasto e o canavial.) Os dois metros entre suas bordas se me afiguravam então uma extensão enorme, de talvez mais que três metros de hoje.
No fundo do pasto, o terreno subia, e lá se achavam, já no alto, as duas palmeiras, ponto de referência das Pedrinhas à distância.  À esquerda delas, a uns cem metros, um arado de discos enferrujado gozava a aposentadoria na sombra farta e amiga do centenário pé de tamarindo.
Através dos pascigos e das estradas das carroças atapetadas de calhaus, ouviam-se trotes e galopes de faz-de-conta do cavalo saído do bambual da borda da roça, cortado com o facãozinho de "Dô" Gil.  O porão raso da casa fazia as vezes de sua baia.  Tãozinho, ele sim, andava em cavalo de verdade: o da entrega do leite, que o peão Amaro lhe emprestava vez por outra.
A uns trinta por hora, os "Vinte-e-nove" dominavam as estradas das redondezas.  Aquela mesmice só foi quebrada quando "Dô" Gil comprou um Chevrolet preto, trinta e dois, que entreou numa festejada viagem a Tocos.
A muita fé da tia Iaiá e de Dona Ica no rifão "Santo de casa não faz milagre" fê-las trocar as respectivas imagens de São Gonçalo, p'ra chamar chuva, a fim de molhar a seca que já ia longe.
Oito horas tinha então, na ausência de eletricidade, ares de noite alta.  Na escuridão de certa noite, chamaram da varandinha da frente: "Nhanhááá, ô Nhanhá, abre a porta! É a gente que 'tá aqui p'r'uma visitinha!" Abriu-se então a sala da frente, sempre fechada à espera de momentos mais cerimoniosos.  Eram visitas da fazenda vizinha.  Qual no velho oeste, o lampião pendente do forro por uma correntezinha, acima da mesa, foi baixado para iluminar a conversa da gente grande, enquanto eu, que dentro de minhas calças curtas tive permissão para participar, praticamente só escutava.
Como distração domingueira, a cvalgada em pêlo no fim da reta grande, em frente à Fazenda do Colégio, quando "Sô" Calmélio excedia a todos no entusiasmo das apostas.  Dizia-se, entre a criançada, num quase sussurro, como se fora um segredo, que os Jesuítas tinham deixado um tesouro que dormia algures, no coração de alguma daquelas grossas paredes do sobrado da sede, em cuja capela anjos negros velavam o sono dos Barroso.  Mas nunca jamais ninguém viu dito tesouro, apesar das incursões com talhadeiras parede adentro, cá, lá e acolá.
Balões e bandeirolas coloridos, milho verde, pipocas e batatas-doces. As emanações da fogueira acesa no meio do pasto atenuavam o frio da noite junina.  Só mesmo o crepitar do fogo e dos traques conseguiam concorrer com a música dos grilos. Os dias devotados a Santo Antônio, São Pedro e São João eram infalivelmente comemorados na roça.
Éramos umas nove crianças, todos primos: juntos subíamos nos ingazeiros, dependurávamo-nos nas mangueiras do pomar de Vó Sinhá, varávamos pelos aceiros dos canaviais para fugir dos maribondos revoltos após a pedrada que espatifara suas casas, pegávamos carona nas cambonas que, de tão pesadas, cinco juntas de bois puxavam sob o comando de Seu Antonino no rumo da Usina São José.  E brincávamos por toda parte enquanto a noite não chegava.
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Longe de me amofinar, nuvens de pó que hoje levantem voo e tudo envolvam acordam em mim, como num filme, as imagens das férias na roça, e diante delas meus olhos piscam. Insistentemente.

                                               A.C.W.C.A.
                                               Brasília, agosto de 19780

Dona Branca (crônica-poesia)

                                    DONA BRANCA

Branca, Alva, Jovem, a velha casa.
Atrás da robustez da grade, o jardim.
Atrás do canteiro, a gateira arejando o porão.
Atrás das ogivas azuis, reverendos pés-direitos.
Atrás da mansão vetusta, a umidade da sombra das copas que se prolongavam até o muro da divisa.
Firmeza no traço sobre a tábua da mesa.  Vigor na voz limpa.  Calor no olhar.
Desgaste no barco e no mar da tela do guarda-comida, no piso da sala, no chão dos degraus, nas portas, nos muros, em tudo.
A velha Jovem, na cozinha.  Sempre envolta em mistério, invisível, a serviçal fiel.
Alva, no jardim e nas férias. (Embaixo das folhas rasteiras, a metamorfose dos pirilampos.)
Branca, na escada, em devaneios: "Múcio..., saraus..., piano a quatro mãos..., as Pedrinhas..., charretes..., tio Gil..., o mano Alfredo e o olho vazado...".
Eu, em pé no capacho, ao pé da escada, em reverência às cãs, olhando, escutando.


                                                                                     A.C.W.C. de Azeredo
                                                                                     Brasília, 16.1.81

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O bem-te-vi (poesia)

                                      O BEM-TE-VI
 
Era uma vez, na infância, um bem-te-vi:
ele chegara ao telhado do vizinho
(o céu ao fundo era todo inteiro azul)
e o seu canto dourado alçou-se em vôo;
e alcançou-me, quedado, olhando o alto,
onde por fim abraçou o anil do céu.
Um sol vibrante (era dia de verão)
no chão espraia um langor esbranquiçado,
meio fosco, que confunde a cor das coisas
cá embaixo, onde o chão e a pedra ardem.
E o bem-te-vi se apressou p'ra a goiabeira,
que estendia os braços p'ra o telhado,
num convite ao cantor à sua sombra.
Mais perto a mim, que o espiava da janela,
ele chegou-se, aprumado, irrequieto.
Nossos olhares então se encontraram
e passamos, em seguida, a conversar,
eu com os olhos e ele co'as três palavras,
só com as três que ele, únicas, sabia,
mas que encerravam todo o vocabulário
da fantasia dos sonhos de minh’alma.
Disse que vinha de voar nas redondezas,
vinha das bandas poéticas do mar,
e em canto altivo se pôs logo a narrar
o que ele vira em tão amadas plagas:

Falou então da planura
da Planície Goitacá,
tingida de um verde seco,
sobre o qual penachos brancos
pareciam flutuar;
das cambonas carregadas
que rangiam pelas trilhas,
dentro dos canaviais,
em demanda das usinas;
da fumaça que suas torres
soltavam de noite e dia,
espalhando tons de cinza
no espaço imenso do céu;
falou-me do Paraíba,
das linhas curvas traçadas
pelo curso de suas águas;
de suas margens viçosas,
onde árvores copadas
desenhavam sombra amena
nos tapetes de capim;
e contou-me das lagoas
espalhadas na macega,
das marrecas cantadeiras
que, assustadas, se evadiam
de suas águas em revoada;
das piaçocas que pintavam
de vermelho a umidade
da folhagem de suas beiras;
falou de São João da Barra:
uma igreja em cada rua,
ruas finas e espremidas
entre casas e sobrados
antigos, velhos, pacatos,
mas exalando encanto
e poesia em cada esquina;
da pracinha da cadeia,
defronte ao porto do rio
que, barrento, se apressava
para o mar, ali já perto;
dos bolhinhos de arroz
que a garotada vendia
na estação de tijolinhos,
enquanto no largo ao lado
umas carroças postadas
assistiam às manobras
dos comboios nos desvios
dos trilhos multiplicados;
veio depois Atafona
e seu farol que piscava
para as espumas do mar,
ora doce, ora salgado,
conforme o vento soprasse
ou do nordeste ou do sul...

Nisso, um ruído, surgido não sei de onde, 
mandou de volta p'r’o céu o bem-te-vi.

E os anos se passaram.  E os ruídos
se expandiram, e cresceram, e invadiram
sem clemência estes dias sufocados,
na hedionda tentativa de abafar,
sufocar e alfim matar a poesia.

Mas em meio a tal terrível remoinho,
venturoso é todo aquele que alça vôo
e acha refúgio nas sombras do passado,
onde um dia conversou com um bem-te-vi.


                     Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo

Pequena crônica de uma viagem ao Sul do Mundo


Pequena crônica de uma viagem ao “Sul do Mundo”

            Num dos invernos dos anos sessenta Zé Theóphilo, primo do Vô Carlinhos pelo lado dos Bello, foi nos visitar em Lages.  Afora o Rio, o lugar mais longe aonde ele já tinha ido antes fora a capital mineira.  Não foi pois de estranhar a reação que teve quando chegou de ônibus a Lages. Afinal, foi uma respeitável quilometragem percorrida desde a saída de São Fidélis, sua quente terra natal no Norte fluminense, e após ter atravessado por inteiro os Estados de São Paulo e Paraná e quase todo o de Santa Catarina. Ali no inverno lageano, a poucos qulômetros dos pampas gaúchos, Teóphilo exclamou tiritando e curvado de frio: “Terrinha longe... Esta terra aqui é o Sul do Mundo...”  Uns dias depois, ainda não acostumado com as rajadas de vento gelado que sopravam, ele dizia vez por outra: “Êta lugarzinho frio! É bem aqui que o vento Sul faz a volta”.
            Sempre achei que Theóphilo tinha razão.  Na verdade nem sei como consegui sobreviver ao frio que passei em Lages. Ao todo nove invernos, já que o tempo lá não se conta por anos, mas por invernos, e já que também, conforme era dito pelos próprios lageanos naquela época: “Aqui só tem duas estações: o inverno e a estação ferroviária”.  (Só depois que saí de lá é que construíram uma rodoviária digna desse nome.)
            Talvez soe incoerente um aposentado dizer que vai tirar férias. Não deixa porém de ser férias a simples mudança de ambiente e da rotina semanal, principalmente se isso acontece a propósito de uma viagem e se há uma praia no circuito. Foi o que aconteceu comigo. Fomos matar saudades do Sul. Por precaução no entanto não incluímos Lages no roteiro. Afinal, nunca se sabe... aquela história de “Sul do Mundo” e de “onde o vento Sul faz a volta”, meio que espanta a gente... ainda que seja verão...
            Em 27 de dezembro último estávamos chegando a Florianópolis. Pouco depois fomos ao Balneário Camboriú, onde passamos uns dias. Não era porém aquela Camboriú a mesma de nossas férias de antigamente, quando morávamos em Lages e íamos anualmente à praia: a cidade cresceu para os lados e para cima. E continua crescendo. Os fogos de 31 de dezembro, soltados daquela ilhazinha defronte ao centro, parecia que vinham bater na gente: assistimos de camarote, no nono andar, bem na frente da ilha. Bonito! Mais que isso: lindo, lindo! O mar é manso em Camboriú, e estava quentinho aqueles dias. Fiz castelo de areia com os netos e comemos milho verde e churros e muito peixe. Curiosamente, a prefeitura, por conta do turismo, paga salários a pescadores que, mais de uma vez por semana, lançam a rede de arrastão à tarde, a partir de barcos coloridos: é um espetáculo bonito, aquela fileira de bóias flutuando em curva, que se vão mexendo lentamente em direção à praia à medida que os pescadores, tombando o corpo para dar mais força, arrastam a rede para a areia, onde ao final da operação são contados os peixes recolhidos.
Depois cada família foi para seu canto e Helena Angela e eu nos dirigimos à pequena Angelina, distante uma hora de Florianópolis.
            A estada em Angelina esteve envolvida numa atmosfera de poesia, apesar do que nos levou até ali: uma pequena cirurgia a que se submeteu Helena Angela com um médico amigo de nosso filho que, mesmo atendendo também em Florianópolis, prefere operar no hospital de Angelina, do qual é diretor. A cidadezinha começa a impressionar antes mesmo de se chegar a ela. Poucos minutos depois de sair de Florianópolis, a estrada vai subindo aos poucos, à medida que se dirige para a região serrana, no interior do estado. Quando já em boa altitude, deriva‑se para uma estrada secundária que, mergulhando na Mata Atlântica, só faz descer num longo trecho em curvas grudadas que se sucedem com enorme rapidez, até chegar a um vale aprazível lá no fundo.             Lá embaixo Angelina é fim de linha: não existe nada além dela. A cidade chama a atenção pelo tamanho (é pequenina por demais...), pela "fisionomia" típica de cidade do interior (pracinha com coreto em frente à igreja e casas com ares de antigamente), pelo ar bucólico que a envolve (pastos e gado convivem com as casas esparsas), por sua população (gente afável que cumprimenta os desconhecidos, coisa rara nas cidades grandes), pelo capricho do povo (além de varrer a rua defronte das casas, planta flores até mesmo nas bordas das pequenas lavouras domésticas que olham para a estrada‑rua, bem como ao longo dos meios‑fios), pela absoluta fartura do verde (as encostas dos morros que circundam o vale gramado são totalmente cobertas pela mata) e pela neblina que esconde a cidade de manhã cedo.         O hospital de Angelina serve a toda sua vasta redondeza. Sua ordem, limpeza, capricho e bom atendimento devem ser creditados às freiras que o administram e que trazem o sotaque carregado da colonização alemã da região. Suas modernas salas de operação vieram da Alemanha, por influência das freiras. O repicar do sino da capela, nas matinas e às seis da tarde, dava um ar de nostalgia ao silêncio reinante em redor (o hospital, no alto de uma colina que ladeia a estrada-rua, é isolado do resto da cidade).
            Após uma semana lá, estivemos na casa do filho em Criciúma. Tomar café com leite e pão torradinho no Angeloni era um de meus programas favoritos. E também do Frederico, ali ou nos “shoppings”, cada vez que saíamos. Gosto de ver as ruas de Criciúma, de andar nelas, ruas de pedras que têm esquinas e calçadas protegidas por marquises, gosto de andar na frondosa sombra das árvores da praça da catedral... É uma sensação gostosa que me transporta em pensamento até Campos, onde nasci e cresci andando em ruas e praças e esquinas como aquelas.
            Curiosamente tal sentimento é bem marcante ali e em Florianópolis, próximo ponto do retorno da aventura cigana dessas nossas férias. Em Florianópolis, Helena Angela prosseguiu sua convalescença, na casa do irmão, plantada na encosta da Mata Atlântica. Enquanto o relógio antigo cantava na parede da sala de refeições, os canários cantavam no poste e nos fios em frente e nas árvores lá atrás. Ainda lá atrás, saracuras caminhavam com suas pernas compridas pelo riacho que, descendo o morro, faz uma curva para entrar no fundo do quintal: geralmente andando em grupos, cantam em coro um canto esganiçado e estridente que se ouve de longe. Como em Angelina, os galos cantavam de madrugada também ali no morro do Pantanal. Um dia, um lagarto gordo, de mais ou menos um metro, atravessou lentamente o asfalto: chamou minha atenção o espírito ecológico do motorista, que parou o carro para não atropelá-lo; e mais: como o lagarto resolvesse estacionar embaixo do carro, ele pacientemente esperou para arrancar só depois que o dito-cujo resolveu sair para concluir a travessia. Num descampado no câmpus da Universidade, ao pé do morro do Pantanal, garotos soltavam pipas, acendendo assim lembranças de meus dias de menino, quando nós mesmos, lá em casa, fazíamos as pipas que soltávamos nas férias em Atafona...
            Finalmente levantamos vôo de Florianópolis, deixando para trás a geografia daquele quinhão do “Sul do Mundo”, e trazendo, aconchegantemente arquivada na memória do coração, a recordação saudosa e nostálgica das inesquecíveis férias passadas perto de onde, como dizia Zé Theóphilo, “o vento Sul faz a volta”...
***
                       
                      Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo
                      Brasília, 23 de fevereiro de 2007

Em tempo: Alguém, a quem mandei também este relato, escreveu-me dizendo mais ou menos isto: “Caminhei com seus pés e olhei com seus olhos a poética cidadezinha de Angelina”. A isso, Helena Angela exclamou: “Só se for mesmo com  ‘seus’ olhos... Ainda bem que lá é tão escondido e de tão difícil acesso, senão as pessoas poderiam correr o risco de ir lá conferir... e acabariam se decepcionando, como aconteceu com a Vó Georgina em Santo Antônio de Pádua...”  Explico: quando eu ainda era jovem, resolvi certa vez, numas férias, conhecer Pádua, ‘famosa’ (!) estação d’água no interior do Estado do Rio; era no tempo quando as estradas para aquelas bandas ainda eram de chão; encantei-me com a pequenina Pádua, tão quieta, tão bucólica, tão poética; e escrevi para casa, como habitualmente fazia; Mamãe se encantou com a descrição e foi para passar o resto das férias comigo; três dias depois de chegar lá, no entanto, arrumou as malas e disse: “Meu filho, vou voltar para Campos hoje mesmo. Aqui não tem nada... a gente não tem nada para fazer aqui.”  Bem, para não correr o risco de vocês acharem que estou exagerando, estou mandando a seguir algumas das muitas e belas fotos que bati de Angelina. Se quiserem ver as outras, é só falar. E se quiserem ir lá e conferir... Bem... acho que Helena Angela exagerou...   A.C.




segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Um muro no Plano (crônica)

UM MURO NO PLANO

            Não fora o impacto do tom forte, e seria um belo muro, ainda mais que faz uma curva suave no ponto em que dobra a esquina por onde habitualmente passo, o que dá a idéia da poética continuidade que os trilhos dos trens inspiram, mesmo quando só se vêem trechos deles.  É ocre, fino, não muito alto, inteiriço e sem pilares ao comprido de seus aproximadamente quarenta metros, novo ainda e bem conservado.  Não gosto de amarelão, não gosto daquelas superfícies lisas e sem as interrupções periódicas de pilares, não gosto das linhas arquitetônicas modernas.  Mas, com tudo isso, aquele muro é como um ímã que me puxa com enorme força e me obriga a andar na calçada larga ao lado dele.  Atravesso, instintivamente, a rua sempre que passo ali, só para ficar perto de meu muro.  Mas me pergunto: por que meu muro? se não me agradam aquele ocre; aquele desenho; aquela ausência dos rebocos esburacados que deixariam ver, como em outros muros, janelas em que pedaços de tijolos avermelhados costumam contar histórias; aquela ausência de sulcos que desenham imaginários cursos de rios cheios de afluentes e de tributários desses afluentes, numa ramificação estupenda, qual nos mapas escolares, sulcos que serpeiam por onde costuma haver só resquícios de cal; aquela ausência de contrafortes, que deveriam estar abraçando a lâmina frágil do meu muro?  E insisto em perguntar-me: Por que meu, se os que considero meus são os muros das ruas de minha infância, com que tantas vezes travei diálogos mudos nas minhas caminhadas de menino?
            Morava um português na Rua do Aquidabã, Seu Manuel Pinto.  Aliás, muitos portugueses: Dona Mariquinha e Dona Cândida (duas velhinhas em quem a passagem do tempo não conseguiu esmaecer o sotaque ultramarino), Seu Manuel ex-motoqueiro (e um dos fundadores do Moto Clube de Campos), Seu Manuel oleiro (dono do que chamávamos de Fábrica de Barro, onde se vendiam apitos de garrafinha que, quando cheios d'água, trinavam que nem passarinhos), Seu Frias (dono de uma camisaria na Rua Santos Dumont). 
            Lembro-me do muro do terreno baldio ao lado da ampla casa do Manuel Pinto, esta com uma varandinha na quina do lado direito e um jardim na frente; e me recordo também do dia quando, ao voltar para casa por aquele caminho, como de costume, não sei por que fado, tomei um daqueles malfadados sustos que parecem fadados a ficar para sempre incrustados na memória: um monte, alto e pesado, da areia grossa do Paraíba estava recostado no tal muro do terreno baldio pelo lado de dentro e forçava-lhe a estrutura, de tal modo que, ao passar eu ali, ruiu com a trepidação de meus pés e foi ao chão, inteirinho, de uma só vez, com um estrondo abafado, que por muito pouco não me atinge, mas que me deixou lívido e ofegante.
            As acácias rosas da Rua do Aquidabã, perfiladas na extensão das calçadas onde deixam cair bagas pretas, espalhavam seus galhos, que faziam uma sombra benfazeja e alargada em cima delas e dos paralelepípedos da rua, galhos tão baixos por vezes, que chegavam a roçar nos carros mais altos. 
            Das três ruas que me levavam ao centro, era a do Aquidabã a mais poética e o caminho mais natural.  A do Mercado também tinha, inegavelmente, seus compridos e envelhecidos muros e seu encanto, mas, além de exigir que se desse uma volta maior para ir à Praça de São Salvador, sua poesia era mais áspera, sem cores e sombras, meios-fios de um lado só e leito de chão esburacado e que servia de depósito de lixo para alguns relapsos funcionários da prefeitura, que só mui raramente capinavam seus matagais. Quanto à Rua Sete, porque artéria para o Turfe, já era então irrequieta, nervosa, barulhenta, o que talvez me afastasse um pouco dela.
            Uma das coisas que mais me chamavam a atenção na Rua do Aquidabã eram exatamente seus muros, cheios de encantos diferentes e que ainda ali havia em respeitável quantidade naqueles dias.  O do terreno de Seu Castro era alto, pomposo, apesar de sem reboco, grossos pilares encimados por uma espécie de capitel.  O dos Lacourt dificilmente seria escalado por algum ladrão de galinhas, de tão alto, e nada se podia ver atrás dele, senão as copas de reverendas mangueiras, sendo guarnecido por gigantescos portões de ferro revestidos com folhas de flandres, sem frestas.  Os dos fundos do Palácio do Senhor Bispo também davam para a Rua e chegavam a parecer sinistros, com seus muros quase tão altos quanto os sólidos cômodos ali construídos na linha da calçada, com torreões pontiagudos e cuja saída era uma portinhola que, de tão miúda, mais parecia uma das agulhas dos muros de Jerusalém, por onde mui raramente passava alguém, e mesmo assim só encurvado, geralmente um padre, de quem o traje preto mais mistério parecia infundir ao conjunto, já pesado, já funesto.  E o que dizer dos muros da vila onde moravam, entre outros, Seu Frias (o camiseiro), "Catalão" (o filho de um toureiro espanhol e que era chofer dos ônibus da Santo Antônio) e Seu Rebel (o da sapataria da Rua João Pessoa)?:  sobre uns quatro palmos de tijolos, altas grades de ferro roliço, terminadas em setas, emprestavam-lhes uma imponência que se casava harmoniosamente com as linhas das casas que eles guarneciam, estas ornadas no alto com almofadas de alvenaria desenhadas e emolduradas com requinte, as paredes assentadas sobre altos porões que olhavam para os jardinzinhos através de gateiras decorativas bordadas em ferro.
            Mas não eram, os muros da Rua do Aquidabã, como as paredes das casas das ilhas gregas ou do Algarve, sempre brancas, caiadas e limpas: eram, sim, deixados ao tempo, sendo o mais encardido dentre eles o do vasto terreno vazio da esquina da Rua do Ouvidor, coalhado de cacos de vidro pontudos em cima, nos quais a luz do sol saltitava enquanto eu cortava o cabelo no salãozinho do outro lado das ruas cruzadas e espiava pelo espelho do barbeiro os pingos e riscos de luz jogados para o alto sobre ele.
            Retorno para os dias que correm e olho diante de mim: não vejo senão o muro ocre, feio, moderno.  Cidade pobre de muros, este Plano não tem chãos particulares, onde as crianças guardem, debaixo das moitas de hibisco vermelho ou atrás das touceiras de banana-figo, seus brinquedos, para continuar amanhã a fantasia dourada das moedas de barro feitas por elas mesmas para ser o tesouro que o xerife vai proteger dos bandidos mascarados; e dos caminhõezinhos de madeira que rodam sobre tampinhas de penicilina enfiadas nas extremidades de eixos de arame cuidadosamente desempenados pelas batidas da cabeça da machadinha, e que percorram as estradas desenhadas no quintal.
            Ah! o muro do fundo do meu quintal, que o passar dos anos foi abaixando... Ah! o mundo encantado que havia por trás daqueles tijolos mal cobertos por uma argamassa já então velha: as árvores do terreno de Seu Castro eram aos nossos olhos uma floresta virgem, e os cachorros que latiam entre seus troncos eram feras de Bengala, da África, da Tasmânia...
            Olho meu muro ocre, mas já não mais ouso perguntar-me por que o chamo meu.  Quedado, o contemplo, a ele, único muro que vem ao meu encontro em todas estas cercanias faltas dos muros que os desenhistas desta Capital se esqueceram de prever em seus projetos, talvez porque nunca tivessem guardado um carrinho de brinquedo atrás de alguma moita de bananeira, nalgum quintal particular cercado de muros. Talvez – quem sabe? – até mesmo por querer deliberadamente emprestar certo ar de aridez à cidade que não era deles.
            Quando, agora, olho o muro que adotei, o que vejo não é mais o amarelão espantado, nem aquelas linhas modernas sem pilares, mas meu coração enxerga nele os mesmos muitos muros que desfilaram muitos dias, cheios de poesia, diante de meus olhos de criança.

                                               Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo
                                               Brasília, dezembro de 1983

O bonde de Goitacazes (crônica)








O bonde de Goitacazes no encontro das ruas dos Goitacazes e Ipiranga, tendo ao fundo o Externato Humberto de Campos

O BONDE DE GOITACAZES

            Calmos, seguiam ambos: a década de quarenta e o Paraíba.
            Talvez não tão lento quanto as águas barrentas que caminhavam rumo a Atafona, lá ia o bonde de Goitacazes ao seu lado, deixando atrás o casarão colonial do Banco Abelardo Queiroz, na esquina da praça.
            Dentro do bonde, meus olhos de menino bebiam a paisagem vista daquele trecho, onde a largura do rio contrastava com a estreiteza da rua em que se plantavam seus trilhos.
            A marcha era ainda mais retardada pela presença impertinente dos caminhões  - carregando ou descarregando açúcar, subindo nos meios-fios, tirando finos nos outros veículos e no bonde -  no trecho dos armazéns, nas imediações das Ruas do Rosário e dos Andradas.
            Por entre os troncos das velhas árvores (três, se bem me lembro) em frente ao quartel, divisava-se a curva branca da Lapa, onde o Paraíba  - que ali fechava a grande barriga que se estendia desde o Saldanha -  afinava o curso.
            Na esquina da Ouvidor, o bonde deixava o rio para trás, em demanda do palacete de Raoul de Thouin, sempre fechado.
            Na Rua do Gaz, a bifurcação dos trilhos: Matadouro à esquerda, Goytacazes à direita.  Era o canto mais caro do meu mundo; nascido defronte ao ponto do bonde, crescera ouvindo a música de sua marcha, na cadência dos encontros dos trilhos.
            Parecia-me então bem mais larga a Rua do Gaz, apesar de só caber um carro ao lado do bonde: fantasia infantil.
            De um e do outro lado, aqueles recantos e cenas que, imperceptivelmente, se iam entrelaçando na minha alma e formando um precioso patrimônio emocional que seria só meu pelo resto dos meus dias: a janela onde Seu Zizo coçava as gengivas vazias desde que perdera algures as dentaduras na beira do Paraíba; o açougue de Seu Nelson, que amiúde recebia a visita do bonde de carne, todo fechado, verde escuro, com uma porta no meio por onde desfilavam meios bois vermelhos nas costas de homens fortes que trajavam macacões outrora brancos; o armazém da esquina da Formosa, cujos picolés de uva mais pareciam sê-lo de água adocicada tinta de roxo; a padaria de pó de pedra, onde Seu Pedra outrora tivera um bar e em que, já então, pães tresnoitados contemplavam através dos vidros dos balcões a freguesia aborrecida; o estádio do Goytacaz com seus círculos olímpicos, pendentes entre pequenos torreões que ganhavam bandeirolas em dias de jogo e pouco abaixo dos quais as janelinhas gradeadas das bilheterias espiavam, dominicalmente, as enormes filas de torcedores; a vendinha onde habitualmente comprávamos mariola e lápis de pedra; o A-40 dos Passos, eternamente estacionado na sombra da árvore fronteira à casa deles; o Externato Humberto de Campos, em cujas carteiras encaixávamos, numa reentrância na borda, os tinteiros que levávamos de casa e onde mergulhávamos as penas de nossas canetinhas roliças; a campainha no frontispício do Cine São José, que tilintava ensurdecedoramente nos cinco minutos que antecediam a próxima sessão; a estrada do Capão e o sítio de Seu Lucrécio, poucos passos além do fim da linha.  Tudo na rota do bonde de Goitacazes.
            Poucos vestígios restam dos caminhos dos bondes de Campos. Talvez apenas pedaços de trilhos trazidos à tona aqui e acolá pelo desgaste do asfalto com que maquearam as ruas da cidade.
            Ao vê-los recentemente, emocionei-me.  Parecia-me, a pouco e pouco, penetrar através dos mantos do asfalto e do tempo...  e ouvir o "Amanhã tem pão! Não tem, não tem!" dos sinos da Catedral nas manhãs de domingo que anunciavam o fim da missa...  e marcar o compasso das retretas da Lira de Apolo, que escutávamos enquanto saboreávamos o cheirinho dos fornos do Pão Quente enquanto esperávamos, ali na praça, o bonde de Goitacazes...

                                                            Antônio Carlos Wagner Cordeiro de Azeredo
                                                           Brasília, 19.2.79