sábado, 24 de março de 2012

Atafona em meu quintal


Atafona em meu quintal

            É curioso como coisas, pessoas e até diálogos acabam, por vezes, por dar nomes aos lugares. Uma vez ouvi de uma família originária da região de Varressai, no Estado do Rio, que o nome da cidade derivou de uma frase repetida um sem número de vezes pelo dono de uma propriedade do interior, onde as tropas de burros pediam licença para pernoitar; ao levantarem acampamento na madrugada do dia seguinte, os tropeiros perguntavam o preço da estadia ao proprietário, mas este nada cobrava, senão que deixassem o lugar limpo, dizendo-lhes então: “Varre e sai”.
            Certamente houve, num tempo que já vai longe  — já que nem os mais velhos se lembram —, algum moinho no povoado plantado nas areias grossas da margem direita da foz do Paraíba, ou mesmo em suas redondezas mais próximas.  De que outra maneira teria ele sido batizado de Atafona?  A apenas pequenos três quilômetros além de São João da Barra está a praia de Atafona, hoje vila daquele município fluminense. O crescimento do povoado veio a reboque do trem que bufava grossa e escura fumarada enquanto corria por sobre os trilhos vindos de Campos e que reduziram a distância que separa a “Pérola do Paraíba” da foz do rio, antes percorrida por pequenos vapores e pranchas de brancas velas triangulares. Pela estrada aquática é que viajavam outrora as mercadorias entre Campos e São João da Barra e os campistas que iam veranear em Atafona, por preferirem-na à praia de seu próprio município, já que a do Farol de São Tomé era tão mais longe e em estrada de chão batido cheia de sacolejos. Assim, mesmo sem belezas naturais que a destacassem, Atafona tornou-se a praia oficial dos veranistas de Campos.
            Quando o farol de Atafona era perto da estação do trem, vovó Dona comprou uma casinha perto dele, criando-se assim, desde duas gerações atrás, meu entrelaçamento indireto com aquela praia, vínculo que se tornou direto a partir de quando, na tenra infância, fomos a Atafona nas férias de Papai, o que está documentado numa foto esmaecida pelo tempo, em que estou sentado no peito dele deitado na sombra de um pé de “anoza” no quintal da Vila Gabi, que então pertencia a seu primo Filipe. Já então, a casa perto do farol não mais estava nas mãos da família. Na seqüência dos anos, infalivelmente, íamos a Atafona nas férias de fim de ano.
            Foi ali que conheci, pontilhando de tons de vermelho certos arbustos espalhados por toda parte, uma frutinha de pequenos gomos luzidios, cuja doçura era misturada de um azedinho que a tornava ímpar. Mas era difícil para nós, crianças, encontrar a pitanga no ponto ideal de doçura, já que a praia era muito freqüentada e outros chegavam na nossa frente para colhê-la.
            Por ver então as pitangueiras somente ali na praia, passei a associá-las genericamente às areias vizinhas ao mar, como se elas só dessem em tais contextos, pensamento que acabou se enraizando de modo imperceptível em minha mente. Mesmo em tempos recentes, eventuais idas à praia eram acompanhadas, ainda que não expressamente definida, da prazerosa sensação de expectativa de que iria procurar uma pitangueira, de que ela deveria ter pitangas maduras, e de que, ao saborear o azedinho de sua doçura, fatalmente me transportaria em pensamentos aos deliciosos momentos dos dias de criança em Atafona.
            Os anos se passaram. Estávamos então em Lages, no interior catarinense. Um dia, num bosque nos arredores da cidade, ao lado de majestosas araucárias, vi umas pitangueiras. Custou-me identificá-las como tais, pois eram delgadas e espichadas para cima, tão diferentes do jeito como as conhecera em Atafona, atarracadas, arbustos que mais pareciam touceiras. Mas o fruto era o mesmo! Saboreei-os, e de repente como que fui arrebatado... Vi-me, em meus pensamentos, pisando a areia grossa da praia da infância à procura de pitangas, no meio da macega, nas beiras dos caminhos, e até defronte à estação do trem, onde havia umas poucas moitas delas... Era um sentimento arrebatador, porém nostálgico, tão longe estava tudo, tanto no tempo como na geografia... Ao voltar a mim, como que acordei da ilusão de que pitangueiras só nasciam na areia: a prova estava ali diante de mim.
            Aquele acordar, na memória palatal, de um sabor tão peculiar e que trazia à tona tão gratas memórias, despertou-me à atenção para a possibilidade de ser perfeitamente possível, e até fácil, acionar o dispositivo que as faria brotar a qualquer tempo que quisesse: o suco da pitanga, engarrafado, ao alcance da mão nas prateleiras dos supermercados! Assim foi que, mesmo longe, Atafona passou a visitar meus pensamentos de maneiras tão vívida, com mais freqüência.
            Outros anos se sucederam. Já agora em Brasília, foi a vez de visitar uma chácara nas redondezas da cidade, em Sobradinho. De súbito, de dentro da casa, que vi eu através da janela da sala, salpicada de vermelho? Era uma pitangueira carregada, como nem na Atafona da infância jamais vira! Não para quem estava por perto, mas para mim aquilo era uma como que apoteose. A visão arrebatou-me: visão, olfato e paladar juntos deliciaram-se. E um sonho, bobo talvez para os outros, mas para mim um verdadeiro sonho tomou forma bem definida então: quero um dia ter um quintal, e ter nele pitangueiras...
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            Que sensação aprazível, a de ver sonhos deixarem de ser sonhos, por virarem realidade! Dois deles acabaram por acontecer simultaneamente algum tempo depois da pitangueira de Sobradinho. O desejo, desde a juventude agasalhado de na aposentadoria morar nalguma cidade tranqüila do interior, materializou-se neste maravilhoso lugar chamado Lago Norte, retirado do barulho da capital, mas tão próximo dela. O quintal da casa já tinha um pequeno pomar formado quando chegamos, e qual não foi minha alegria ao ver, entre a jabuticabeira e o pé de manga-espada, uma pitangueira parecida com as do bosque nos arredores de Lages!  Por estar na sombra, espichara em busca de luz, poucas frutas dava. A seu lado, nasceu um pezinho, filho dela. Mais que depressa, transferi-o para um lugar ensolarado. E depois consegui mais mudas, e hoje cinco pitangueiras se alternam frutificando em meu quintal.
            É para o meu quintal que vou quando sinto necessidade de alimentar-me com as imagens saudosas daquele tempo distante: elas brotam vívidas cada vez que vejo aquelas bolinhas de gomos vermelhos luzidios, ou levo uma pitanga à boca e sinto seu sabor no palato, ou mesmo, quando não é tempo delas, se aperto entre os dedos uma única de suas folhinhas e sinto nelas o cheiro da pitanga, tão fortemente presente também em suas folhas.  Cheiro, sabor, visão, tudo voa num átimo para aquele ponto mágico da memória que mora no meio do peito, e me arrebata para uma Atafona de sonho, é verdade, mas que para mim é real e mora no meu quintal.

ACWCA
Brasília, 21 de maio de 2004

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Minha Campos tem palmeiras...

         


Minha Campos tem palmeiras
que correm enfileiradas, duas a duas,
pelas bandas do Matadouro,
enquanto olham o Paraíba ali defronte.
Minha Campos tem uma igrejinha branca,
no lugar onde o rio faz uma curva larga.
Minha Campos tem uma imitação de cais,
onde as pranchas aportam
para despejar a areia tirada do fundo do rio.
Minha Campos tem carroças de duas rodas,
puxadas por mulas pacatas,
que descem pelas rampas da beira do rio
para pegar a areia que as pranchas trouxeram:
"O Sol nasce para todos".
Minha Campos tem uma charrete,
com um tonel branco atrás,
em que Seu Souza leva leite para a freguesia.
Minha Campos tem uma carrocinha de mão,
em que um velho murchinho
vende verduras também murchas.
Minha Campos tem uma bicicleta
com uma cesta cheia de pães na garupa.
Minha Campos tem um ônibus amarelo,
que leva as crianças à roça, nas férias de junho,
e um trem de fumaça, que as transporta no fim do ano a Atafona.
Minha Campos tem bondes abertos,
em que os fiscais olham, num espelhinho,
os números que os cobradores escrevem no relógio preto lá atrás.
Minha Campos tem um cinema
com uma campainha na frente,
que toca para avisar o começo da sessão.

Não sei porquê...  é do feitio do tempo mudar o rosto das cidades
e apagar imagens que, apesar disso,
teimam em permanecer intactas nos escaninhos de nossas recordações...

                             A.C.W.C.de Azeredo

                             Brasília, março/84